Por: José Manuel Araújo
Mais uma arbitrariedade robótica que neste ano de 2022 permite colocar as duas representantes de S. Vicente no mesmo grupo do campeonato nacional, assegurando a priori a eliminação de uma pela outra e cortando pela raiz a hipótese de voltarmos a ter uma final disputada entre duas equipas desta mesma região desportiva.
Não negligencio a privilegiada posição de observador interessado em analisar com rigor e honestidade matérias concernentes ao nosso futebol, para dali poder partilhar construtivamente as minhas preocupações.
E é na sequência de anos de observação atenta de certos factos, alguns deles bem inusitados e que, por alguma habilidade corporativa continuam passando pelos pingos da chuva como situações absolutamente normais, que fico com a estranha, mas óbvia convicção, de que o processo de construção do futebol no nosso país tornou-se na construção de um boneco. De que, o futebol está a ser transformado num robot que se presta a todos os serviços, automatiza mentes e dignidades, com o simples apertar de um botão.
O ser humano não resiste a tentações e, sabendo disso, ele deveria, racionalmente, sempre escolher a garantia da precaução, pelo que, pior ainda e quase desastroso será quando resolve conscientemente instrumentalizar essa racionalidade para esconder os impulsos emocionais por onde trilham as suas iniciativas. E nesta condição que expõe o homem perante as suas próprias fraquezas, não se deve culpabilizar ninguém pois, se como diz o ditado, a ocasião faz o ladrão, no caso em apreço, a tentação do pecado está ali à mão de semear e tem um nome.
Trata-se do modelo de futebol em vigor no país que, com o passar do tempo e com a dinâmica evolutiva da realidade social, cultural e económica, foi-se transformando num corpo estranho, obsoleto e marginal, que reage ao seu uso de forma agressiva por não reconhecer o contexto onde está inserido. Uma reacção cujo conteúdo reside no facto de se ter tornado num modelo que inevitavelmente altera a verdade desportiva e num campo aberto para a promoção de práticas anti-desportivas.
Sabemos das dificuldades do país, particularmente as financeiras. Mas também sabemos que insistir em substituir a realidade pela fantasia cava ainda mais essas dificuldades, pelo que o nosso país já precisa de um modelo que promova o futebol pelo mérito, o mérito pela recompensa, e que se auto-dinamize sem a interferência humana, ou seja, sem o dedo humano a carregar no botão do robot todas as vezes que ele precisa dar um passo. Pois, é precisamente esse dedo humano o instrumento que o desgoverna.
Sendo impossível apresentar uma listagem exaustiva das intermináveis evidências, deixo aqui um único mas eloquente exemplar:
Foi polémica a divisão da ilha de Santiago em duas regiões desportivas. Por um lado, os santiaguenses defendiam que a dimensão territorial e populacional da ilha assim o justificavam e, por outro, os de outras ilhas, particularmente S. Vicente, habituada a se fazer bem representar por mérito, sentia-se penalizada com essa opção que, por um automatismo qualquer, a secundarizava.
Como resolver essa pendência? Simples! Carregar o botão do robot que divide Santiago em duas regiões. Com este novo figurino, que também já incluía o conceito de defesa do título, S. Vicente tem, com alguma regularidade, participado com dois representantes nos campeonatos nacionais. E para assegurar e legitimar a visibilidade do desempenho e mérito de regiões e equipas nessa condição, carregou-se no botão do robot que coloca tais equipas em grupos distintos. Assim, não se eliminando mutuamente, fica-lhes garantido que não serão o esforço e o mérito para essa conquista a pôr em causa e a banalizar a notoriedade alcançada.
Na sequência deste comando robótico que meritoriamente protege e divulga a notoriedade de regiões com dois representantes nos campeonatos nacionais, em Santiago começou-se a reivindicar o mesmo tratamento para representantes das duas regiões Norte e Sul, com a justificação de que pertenciam à mesma ilha. Sequenciando os procedimentos, primeiro como acima referi, com o fundamento da dimensão territorial e populacional, apertou-se o botão do robot e dividiu-se Santiago em duas regiões permitindo-a passar a ter dois representantes nos campeonatos nacionais, um de cada nova região. Mas, note-se que pelo mesmo acto, também deixou de existir a região de Santiago, passando a existir as regiões de Santiago Norte e Santiago Sul.
Porém, pretendendo com essa divisão o milagre de aproveitar das suas vantagens, mas não aceitar os seus desafios, essa ilha que lutou para ser duas regiões criadas pelo botão do robot, passou de seguida a reivindicar que, pelo mesmo processo robótico, ambas as regiões passassem a ser tratadas como uma só. O mecanismo que permitiria com que as equipas de uma e de outra região não fossem inseridas no mesmo grupo de campeonatos nacionais, tal como se fossem equipas duma mesma região. Portanto, receberiam por via administrativa um reconhecimento de mérito equiparado ao das equipas duma mesma região, porém assente numa ambição descontextualizada do todo nacional, num vazio e como se vê, numa contradição de fundamentos.
Não consumado formalmente esse propósito, talvez por se configurar uma explícita proposta de anarquia moral, a verdade é que por vias travessas, hoje, numa nova e bizarra iniciativa, o botão foi mais uma vez accionado para responder a antigos anseios de igualar o desigual. E é assim que, se após anos, as duas regiões de Santiago Norte e Santiago Sul ainda não conseguiram esse mecanismo que as permitisse, mesmo sendo duas por exigência própria, poderem entretanto quando lhes convém, serem enquadradas como se de uma só se tratassem, então, terá de ser a região de S. Vicente que deverá neste quesito em concreto passar a ser tratada como duas regiões.
Mais uma arbitrariedade robótica que neste ano de 2022 permite colocar as suas duas representantes no mesmo grupo C, assegurando a priori a eliminação de uma pela outra e cortando pela raiz a hipótese de voltarmos a ter no país uma final disputada entre duas equipas da mesma região de S. Vicente.
E o argumento utilizado, de que este ano se optou pela “formação livre” dos grupos, pelo impacto emocional e propagandista da expressão, foi a tática perfeita para desviar a atenção de que se decidiu pôr de lado a opção pela “formação justa” dos grupos. E tratando-se de condutas que patenteiam flagrante falta de ética desportiva, a TCV prontifica-se de imediato a interceder com a seguinte notícia:
“Os grupos já foram feitos…o Mindelense e a Académica do Mindelo ficaram no mesmo grupo C. Em Santiago, “TAMBÉM”, o Varandinha e o campeão de Santiago Sul ficaram no mesmo grupo”.
Quem escuta esta notícia que recorre ao efeito branqueador da expressão “TAMBÉM”, para disfarçadamente fazer assemelhar situações não semelhantes, corre sérios riscos de ficar convencido que da medida, e anunciadas idênticas implicações nas regiões mencionadas, não se pretende visar particularmente a ilha de S. Vicente, quando a verdade é outra. Enquanto para a região de S. Vicente essa medida significa uma garantia prévia de que lhe serão retirados os privilégios conquistados de poder chegar por mérito com duas equipas à final, sem que uma elimine a outra, já para Santiago ela não tem qualquer efeito diferente daquele que tem nas restantes regiões do país pois omite que nem a região desportiva Santiago Norte nem Santiago Sul se encontram na mesma situação de S. Vicente, mas sim igual às outras regiões. Portanto, que nesta época a única excepção seria S. Vicente a quem, carregando o botão do robot, retiraram essa condição.
Quem tiver a vontade honesta para se ultrapassar tudo isso, que avance.