Por: Alcides Lopes
O picaresco ambiental e as formas políticas de violência silenciosa
Três décadas se passaram desde a abertura democrática ao multipartidarismo nas ilhas de Cabo Verde. A histórica IV Legislatura foi iniciada a 25 de fevereiro de 1991, com maioria esmagadora de 56 deputados do MPD versus 23 deputados do PAICV. Com a aprovação da nova Constituição de 1992, profundas alterações foram introduzidas. Seguiu-se a V Legislatura (1996) e o partido no poder, de novo com a maioria absoluta, operou mais transformações, entre as quais, o novo hino [maio de 1996] e a revisão da constituição de 31 de julho de 1999.
Concomitante a todos estes eventos espetaculares e importantes para a concretização do regime democrático em Cabo Verde, a última década do século XX enunciou uma nova era do capitalismo neoliberal e do futurismo tecnológico, o karma da virada para o séc. XX, repetindo-se ciclicamente, desta vez, não por forças imperiais, mas sim através das entidades económicas multinacionais do séc. XXI.
Entre os vários exemplos trágicos, menciono algo muito próximo a nós. Podemos relembrar o malogrado caso dos nove de Ogoniland, quando nove ativistas ambientais, entre eles, o escritor-ativista Ken Saro-Wiwa, foram executados em 1995 na Nigéria, num julgamento defraudado pelos interesses transnacionais da Shell. Acontecimento que respingou em Mandela, então recém-eleito presidente da África do Sul.
Em Cabo Verde, no ka ten oru, no ka ten diamanti, no ka ten petrol… mas nem por isso estamos isentos das múltiplas e variadas formas nas quais o desregramento da violência pode se manifestar. A violência da nossa época é versátil e transnacional, pode agir por via indireta, estruturalmente, lenta e silenciosamente, não obstante, a destruição causada – a hybris do oblívio – é cada vez mais nociva e radioativa.
Os diferentes conceitos de violência propostos pelos “teóricos do ambiente” desempenham um papel primordial no entendimento das características picarescas que as políticas públicas de alcance sócio-ambiental e/ou a ausência delas assumem em Cabo Verde. Académicos, intelectuais, ativistas, pesquisadores e líderes comunitários que trabalham questões relacionadas com as múltiplas formas de violência urbana organizada têm alertado para tipos de violência estruturantes, invisíveis e silenciosos, que podem erodir vidas desde tenra idade. O outro lado desta questão remete-nos à resistência das lideranças igualmente estruturantes, invisíveis e silenciosas que edificam vidas resilientes desde tenra idade, se atentarmos para as ilações do sociólogo Redy Wilson.
Neste ensaio, conceitualizamos as diversas formas de violência que se sobrepõe à história recente, não só de Cabo Verde, mas de todos os países do golfo da Guiné enquanto ecossistemas cuja flora e fauna marinhas são constantemente saqueadas por diversas forças alienígenas de mercado com poderes de extração e captura monstruosos, deixando rastros de destruição silenciosos e devastadores.
Violência por via indireta
Em junho de 1962 foi publicado Silent Spring de Rachel Carson (1907-1964), na época o livro foi recebido como uma denúncia que expunha os “novos” perigos, desconhecidos e misteriosos que insistimos em criar ao nosso redor. Estes perigos assumem espectros de uma sombra amorfa e obscura e, por isso, sinistra. Ameaças cujas repercussões fatais estão dispersas no tempo e através do espaço. Referimo-nos a um tipo de violência que não é facilmente perceptível, antes pelo contrário, a sua ação é mortal e degenerativa, mas lenta e invisível.
O livro Primavera Silenciosa [Silent Spring] influenciou um amplo público internacional na tomada de consciência sobre as tragédias prolongadas, enigmáticas e indiscriminadamente infligidas pelo manuseamento de dichlorodiphenyltrichloroethane (DDT). A própria autora, bióloga e escritora premiada, foi vítima mortal de um câncer de mama, aos 56 anos de idade.
Em Cabo Verde, naquela mesma década existia a brigada de desinfestação, como conta-nos a socióloga Eurídice Monteiro num artigo de opinião publicado no jornal Expresso das Ilhas de 19 de maio de 2020. Os homens-da-bomba, como eram conhecidos, realizavam bombagens de inseticida, especialmente DDT, na desinfestação de poços, charcos e casas, de modo a exterminar mosquitos, pulgas, pulguinhas, piolhos e dabius (percevejos de cama) que faziam parte do quotidiano das pessoas.
Mais recentemente, o relatório nacional de avaliação das atividades terrestres, que podem ser fontes de poluição costeira e marinha em Cabo Verde, de 2014 (acesse: www.fao.org) confirma as acumulações de DDT em tecidos adiposos de mamíferos marinhos. Os poluentes orgânicos persistentes (POP) são bioacumuláveis e biomagnificáveis, ou seja, contaminam de tal forma os organismos vivos, que na medida em que percorrem a cadeia alimentar passam a acumular-se no nível trófico mais elevado. Os usos e abusos, praticamente incontroláveis, destes poluentes no arquipélago representam alta periculosidade devido a sua estabilidade e grande resistência à degradação química, fotolítica e biológica.
A aplicação mais nociva é derivada do seu uso abusivo na agricultura e na consequência desastrosa dos resíduos poluentes serem transportados pelos cursos de água até o mar, durante o período das chuvas. Existe também uma série de dioxinas e furanos, substâncias cancerígenas regulamentadas, que afetam os sistemas reprodutivo – causando infertilidade -, imunitário e endócrino, liberados através dos processos de incineração que ocorrem em diversas situações não regulamentadas.
Se considerarmos, no âmbito da questão de segurança alimentar, a luta contra a pobreza veremos, entretanto, que a saúde da população cabo-verdiana caminha para um destino incerto caso medidas eficazes não sejam tomadas. As duas maiores atividades econômicas de subsistência, a agricultura tradicional e a pesca artesanal, estão cada vez mais ameaçadas. Apesar de haver registros precários sobre a contaminação do solo por DDT há décadas, sabe-se que ainda muitos agricultores continuam usando ilegalmente os POPs, apesar de existirem programas e campanhas realizadas pelo Ministério da Agricultura e Ambiente que visam valorizar os produtos biológicos e biodegradáveis no combate às pragas agrícolas.
Cabo Verde, como outras regiões insulares sofre de um problema extremo de perda de solo através do fenômeno erosivo da torrencialidade. Contudo, outro problema de natureza gravíssima resume-se ao facto de que os municípios, os maiores responsáveis pela disposição e incineração do lixo, não incentivam nem praticam a separação do lixo, pelo que todos os detritos e resíduos urbanos, laboratoriais, fabris, hospitalares são tratados numa mesma lixeira onde parte desse material é incinerado.
Para além das diferentes dioxinas liberadas pelo processo de incineração, com as chuvas, a água que chega ao mar através das ribeiras também carrega, além da lama, outras substâncias como metais, herbicidas e pesticidas, as quais chegam na zona costeira e muitas delas acumulam-se em peixes e acabam por entrar na cadeia trófica. As características topográficas das ilhas e as curtas distâncias percorridas favorecem a vazão dos cursos de águas lamacentas no mar quase que imediata e irrestritamente.
Mais uma vez, os parcos recursos tecnológicos do estado e o investimento quase nulo na na população, a falta de fiscalização e a perpetuação de práticas agrícolas coloniais intervém como um fator agravante. Mas, o mais nocivo é o comportamento despercebido dos profissionais e da comunicação pública com relação a este desastre anunciado. Do ponto de vista socioeconómico, o consumo dos pelágicos deve-se à sua acessibilidade no mercado como proteína animal. Entretanto, estas espécies também são responsáveis pela atração dos tunídeos (como atuns e albacoras) para as águas próximas. Podemos ainda destacar algumas espécies de lagostas costeiras que possuem um grande valor comercial no mercado nacional, turístico e para a exportação.
Irremediablemente, as variadas formas de poluição e contaminação que o público e o privado provocam ao ambiente costeiro, através da introdução de substâncias e energia nocivas, causam limitações económicas à pesca e outras utilizações, alterando significativamente a qualidade da água do mar (a qual consumimos) e de todo o ecossistema, como também, danos à saúde da população e à prática de um turismo minimamente sustentável.
Os benefícios económicos, sociais e culturais que provêm da utilização da zona costeira de Cabo Verde são inquestionáveis. Nestas áreas, encontramos actividades económicas e industriais como os portos, os estaleiros navais, o turismo hoteleiro, as marinas, a pesca comercial, a pesca desportiva, vários outros desportos náuticos, o fabrico da água potável, o lazer nas zonas balneares, a extracção de inertes, o desenvolvimento do artesanato etc. Entretanto, já passou da hora de uma mudança eficaz, positiva e legítima de atitude que se distancie o mais possível dos comportamentos sociopolíticos “para inglês ver”.
Violência estrutural
Evidentemente, as tecnologias disponíveis atualmente permitem-nos inclusive acessar teorias sobre fenômenos sociais como depressão e suicídio, reclusão privada, segregação de classes, padrões comportamentais disfuncionais e/ou sociopáticos, banditismo, racismo, dependência química, a partir de perspectivas e ferramentas diferentes daquelas de há três décadas atrás.
A sociedade cabo-verdiana tem demonstrado imensas dificuldades em lidar, de forma transparente e sóbria, com os seus problemas mais inquietos. Não diríamos que existe um silêncio, acho que existe algo pior. No que tange às políticas e ações que tenham finalidade de estudar e entender fenômenos sociais que sejam inerentemente complexos, a ausência de profundidade, seriedade e continuidade é decepcionante. Toda a gente fala e reitera o problema do fragmentarismo e da má fé no funcionalismo público, mas o que se vê são medidas de “passar o pano”.
Não podemos passar o pano para a crescente onda feminicida que teima em fazer vítimas com requintes de psicopatia perturbadores. Não podemos virar a cara para os recorrentes suicídios, incluindo o caso recente de um jovem músico em São Nicolau. Naquele dia, a TCV noticiou o caso no jornal do meio dia, somente vinte minutos após o costumeiro “tempo de antena” cedido ao ministro líder em campanha. Não podemos passar o pano para os trágicos desaparecimentos ocorridos, como se concordássemos com o tipo de determinismo estático que paira fantasmagoricamente sobre o pensamento estruturalista dominante que prenuncia um tipo de violência com conotações estáticas.
“Tudu kes obra ke fetu na kel kau li, fetu pa Stadu, e mal fetu. Dja nu sabi.” disse-me uma senhora idosa, quando ofereci-lhe ajuda para atravessar a rua. Pegamos juntos o hiace, numa das minhas viagens pelo interior da ilha de Santiago. Do alto dos seus oitenta e oito anos de vida, aquela santiaguense do norte, de olhos pequenos e estatura média, contemplou-me com conselhos preciosos. Uma compreensão silenciosa e profunda sapiência amparava as suas observações.
Naquela conversa, como quem se abre sem amarras para um desconhecido (by will and not by force), as palavras de Nhá Ambrosina (n.f) fizeram-me refletir sobre uma ideia estrutural de violência, que funciona em oposição ao conceito e às formas mais convencionais, de imaginar a violência, propriamente ditas.
Suas ponderações levaram-me a questionar, por exemplo, o quanto é mórbida a manutenção de um sistema de saúde extremamente desigual e precário; o quanto vai custar à nação, o facto de muitas crianças pulverizadas pelas pequenas povoações das ilhas periféricas e nas periferias de Praia, Mindelo e outras cidades, não terem nenhum acesso à educação em tempos de pandemia; quantas meninas vítimas de violência sexual, cujo “grito de socorro” ainda é silenciado por um sistema social e institucional heteropaternalista corrupto.
Enquanto penso na nossa trajetória nacional recente, não posso deixar de notar que as sucessivas medidas de austeridade impostas à população cabo-verdiana ao longo das últimas décadas foram simplesmente atos de violência estrutural protagonizados por uma ordem neoliberal. Especialmente, os ajustamentos estruturais, a desregulamentação exacerbada, as fusões corporativas e as privatizações irresponsáveis são formas encobertas de violência, as quais são percebidas como estáticas, silenciosas e traiçoeiras como as “águas paradas” por uns, mas que também são propostas como, dinâmicas, mas, dotadas de uma lentidão plena em toda a sua platitude, por outros.
Violência lenta
Rob Nixon explica-nos que, através do conceito de slow violence, procura evidenciar as questões de tempo, movimento e mudança, contudo, graduais. A ênfase explícita no temporal permite priorizar os desafios representativos e os dilemas imaginativos colocados não somente pela violência imperceptível, mas também, pelas mudanças imperceptíveis através das quais a violência é desacoplada das suas causas iniciais pela ação do tempo. O tempo hoje é um agente complicador, não somente porque o sistema passa-nos a impressão de tempo espetacular 24/7, mas porque os mecanismos invasivos do capitalismo neoliberal atualmente exploram e monitoram até o mercado do domínio do sono (ou dos sonhos).
Enquanto a teoria da violência estrutural implica repensar diferentes noções de causa e agência com relação a eventos violentos, a teoria de violência lenta não exclui as formas de violência estrutural, pelo contrário, ela as absorve. Contudo, o seu espectro descritivo é mais amplo e lida com categorias descritivas de violência mais complexas, as quais podem ser ativadas somente pelo tempo.
Houve uma virada na relação entre a atividade humana e a resposta do tempo/clima de forma dramaticamente evidente, na nossa compreensão acentuada das mudanças climáticas aceleradas. Podemos imaginar estas alterações a partir de dois extremos escalares opostos: 1) nos circuitos biofísicos da vida sustentável planetária; 2) nos circuitos das redes neuro-cerebrais.
Atualmente, várias tecnologias proporcionam desde os mais sofisticados métodos de amostragem de gelo [ice-core sampling] até as fantásticas revelações da cibernética. Portanto, o conceito de violência lenta procura dar conta das mudanças radicais nas nossas percepções geológicas e das nossas experiências tecnológicas de mudança de tempo. A pessoa leitora não deve se surpreender com esta sensação de termos todos chegado ao futuro. Mas, na realidade, a era do antropoceno começou lá atrás no final do séc. XVIII, com a invenção da máquina a vapor por James Watts. O químico atmosférico vencedor do Nobel em 2000 Paul Crutzen teorizou a Era do Antropoceno como o impacto massivo da espécie humana, a partir da era industrial, nos sistemas de vida planetários. Um impacto geomórfico igual, em força e nos efeitos a longo prazo, a uma era geológica.
Trocando em miúdos, o apelo para a dramatização, em detrimento da dicotomização, feito no parágrafo inicial da parte I deste ensaio, tem a intenção de provocar um debate ou, pelo menos, um figment de imaginação que possibilite a existência deste debate. Refiro-me à interdependência dos problemas estruturais e conjunturais com a histórica resiliência da sociabilidade cabo-verdiana. Também chamo atenção para o caráter picaresco aqui sublinhado não se referir simplesmente aos desvios de conduta política, moral e ética que podem ser rastreados individual e subjetivamente. Antes, tinha em mente uma rede de estruturas corrompidas, apropriadas por uma elite político-econômica sem cabrestos, mas extremamente limitada e atrofiada nas suas potencialidades devido à sua dependência de ter de se “alimentar pela mão daquele que o açoita”, em vez de esticar seu pescoço de dromedário mutante e enxergar os oásis possíveis.
Por sua vez, os problemas cada vez mais inquietos como a relação com a diáspora e as obrigações ambientais que o Estado e a sociedade civil precisam assumir com maturidade não são do tipo que se varre para debaixo do tapete. Na realidade, se levantarmos o tapete atual das impropriedades ambientais existentes aos olhos de todas e todos estamos tramados, pois os perigos além de ser transnacionais, são também intra locais, e intra regionais. A distribuição dos perigos verdadeiros e tangíveis que permeiam a segurança alimentar e sanitária já é preocupante e não vão ser as atitudes nem os perfis implantados mormente que vão dar conta do recado.
Lamento informar aos desavisados que estamos vivendo uma situação na qual ou mudamos, ou mudamos. Simplesmente assim!
n.f – nome fictício.
Músico e antropólogo, PhD / tchida.pesquisa@gmail.com