Jornalista Maria de Lurdes lança livro em co-autoria sobre a história e a luta dos cabo-verdianos em Itália
A jornalista cabo-verdiana, radicada em Itália, Maria de Lurdes Jesus, considera que a mulher que hoje pode bater as mãos no peito e declarar com força e orgulho sentir-se realizada, através da autodeterminação, é sem dúvida aquela que pertence a um grupo muito reduzido deste pequeno-grande universo feminino e que conseguiu quebrar aquilo que apelidou de “teto de cristal”. Maria de Lurdes Jesus, que falava ao Mindelinsite a propósito do lançamento do seu livro em co-autoria com Clara Silva, entende que as mulheres representam a luz que guia e que orienta a maioria nessa luta do dia-a-dia pela autonomia económica, que é a base da segurança e garantia de uma vivência existencial. Numa jornada em que se comemora o Dia da Mulher cabo-verdiana disse concordar com a lei de paridade no entendimento que ela é a resposta da luta e das reivindicações da da camada feminina desde a independência Nacional.
Por João A. do Rosário
Mindelinsite – Sabemos que a Maria de Lurdes é uma jornalista cabo-verdiana que vive e labuta em Itália. Escreve um livro em co- autoria com a Clara Silva sobre, precisamente, a emigração cabo-verdiana naquele país europeu. O que o leitor poderá encontrar nesta obra?
Maria de Lurdes Jesus – A obra está dividida em três partes: a primeira é completamente dedicada à história de Cabo Verde e à luta permanente para a sobrevivência do povo cabo-verdiano que encontrou a solução na emigração. Na segunda parte o livro é dedicado à história da nossa emigração para Itália. O livro testemunha, através das entrevistas, a dor e o sofrimento da dura experiência da emigração e, sobretudo do abandono e isolamento do próprio ambiente familiar. A obra quer ser também testemunho de como as cabo-verdianas lutaram para resgatar o próprio status a nível individual e comunitário, respeitando sempre a lei e a cultura do pais acolhedor. E’ essa mesma comunidade que muito contribuiu com as suas remessas ao desenvolvimento de Cabo Verde até hoje.
A terceira parte è dedicada aos “olhares cruzados Ítalo-cabo-verdianos”. O ponto de vista dos italianos que relacionaram com os cabo-verdianos desde o início da nossa presença em Itália. “O livro é fruto de um amplo trabalho de investigação desenvolvida parcialmente em Itália e em Cabo Verde.”
Essa investigação “…pretende contribuir para um maior conhecimento dos processos de inserção social e cultural da comunidade cabo-verdiana em Itália.” Essa publicação, “Cabo-verdianos de Itália: Histórias de vida e de inserção à maneira feminina”, como escreveu no prefacio o Presidente da República Dr. Jorge Carlos Fonseca, “…surge, pois, entre nós, como um meio para, acima de tudo, cultivar, valorizar e defender o património desta Pátria que é o seu Povo, ou todos nós, cabo-verdianos, onde quer que estejamos. Bem hajam!”
MI – Como podemos considerar e caracterizar neste momento a comunidade cabo-verdiana em Itália? Ela está bem inserida na sociedade italiana?
MLJ – A nossa comunidade poderia estar muito melhor inserida se dependesse dela. Por isso a inserção é relativo à disponibilidade e abertura da sociedade de acolhimento. Pela nossa história e a nossa identidade cultural, a nossa comunidade tem todos os requisitos para uma perfeita integração. Está bem inserida, mas acho que poderia estar melhor se tivesse havido mais e melhores oportunidades no país, e também, se as leis italianas favorecessem e dessem melhores condições aos estrangeiros. Hoje Itália, como um país que foi virado para a emigração, pode orgulhar-se dos seus emigrantes. Nós os cabo-verdianos começamos a sentir orgulho dessa nossa comunidade. Se tomarmos em consideração outras comunidades estrangeiras, a nossa está sem dúvida melhor inserida.
“Acho que a nossa comunidade merecia muito mais da sociedade italiana“
MI – A emigração cabo-verdiana para a Itália começou no feminino. Continua assim?
MLJ – A comunidade cabo-verdiana em Itália preserva ainda o primado de três características fundamentais que a distingue da clássica emigração cabo-verdiana e também da imigração de outros países para Itália. A nossa é a primeira emigração para o estado italiano, a primeira a chegar através dos capuchinhos e salesianos que viviam em missão na nossa terra, ou dos comandantes da companhia aérea Alitalia de passagem pela ilha do Sal. Eles abriram esta estrada mas a determinar a cadeia migratória para Itália foram as primeiras cabo-verdianas que aqui chegaram.
Antes da nossa vinda para Itália, já tínhamos um compromisso com a nossa família de encontrar trabalho para as irmãs, primas e amigas. Foi assim que se instituiu a cadeia migratória para o país. E com a chegada de familiares e amigas conseguimos construir na Itália o nosso ambiente familiar.
A nossa imigração sempre foi feminina, mas, com o tempo e o instinto de procriação, levou a mulher cabo-verdiana a pensar de formar a própria família. Multiplicavam-se as viagens para Cabo Verde e também os casamentos e filhos. A chegada dos homens foi muito importante para equilibrar e dar vida à família cabo-verdiana na Itália. Mesmo com a chegada dos homens, dos filhos e irmãos, a mulher cabo-verdiana é ainda a componente maioritária da nossa emigração na Itália.
MI – Ela foi vista em tempos, numa primeira fase, como uma emigração para trabalhar como empregadas domésticas, mas, hoje ela ou a comunidade já é vista mais virada para uma geração melhor e mais qualificada. Explica-me como é que isso aconteceu no seu entender?
“A repercussão da Lei Martelli deu também a possibilidade a muitos jovens da primeira geração de mesmo como estudante.”
MLJ – A comunidade cabo-verdiana sempre esteve atenta às mudanças políticas ocorridas neste país, sobretudo face à emigração. Pergunta, informa em casa onde trabalha, com amigas, na Embaixada, e, através dos amigos italianos, nas associações que no fim dos anos 1980 multiplicaram-se, assim como muitas iniciativas e eventos culturais e de informação. A meu ver, o signo de mudança de vida que dá início à inserção da nossa comunidade em Itália é logo a seguir à lei Martelli do mês de fevereiro de 1989. Essa lei, pela primeira vez, contemplava alguns direitos fundamentais para os emigrantes. O mais importante para a nossa emigração era o direito de poder exercer o trabalho doméstico também como mulher à dias e de ter conquistado o direito da coesão familiar. Foi uma notícia fantástica.
A impressão que tenho é que boa parte das mulheres mães e não só, sonhavam com esse momento. Era como se estavam com a mala pronta atrás da porta à espera do sinal para saírem da “prisão” da casa de senhora e irem morar em própria casa com os filhos. Poder encontrar-se com familiares e amigas e viver assim uma vida normal como todas as famílias. A zona com maior presença de famílias cabo-verdianas era “Fundo de Marè Palinha”, nome de uma zona em S. Nicolau. Foi mesmo uma primeira revolução no seio da comunidade e início do percurso de integração na sociedade italiana. A repercussão da Lei Martelli deu também a possibilidade a muitos jovens da primeira geração como estudante. Eu, por exemplo aproveitei e fui mudar o meu documento de estadia como estudante para poder gozar assim de algumas oportunidades dessa lei.
Mas é na década de 1990 que começamos a encontrar cabo-verdianos a exercer profissões em diferentes áreas como importação-exportação e agências de viagens, cabeleireiro, empregados de hotéis, de bar, enfermeiras, médicas, pesquisadoras e professoras na Universidade, jornalista na radio Vaticana, na RAI, nas grandes instituições italianas, nas companhias aéreas, no sindicato, nas várias lojas e empresários e empresárias da primeira e segunda geração.
MI – Estamos a celebrar Marco mês da Mulher e hoje, 27 de Março, é Dia da Mulher Cabo-verdiana. Como entende a luta da mulher e, sobretudo, da mulher cabo-verdiana para a autodeterminação a diversos níveis?
MLJ – A mulher que hoje pode bater as mãos no peito, e dizer com força e orgulho se sentir realizada através da autodeterminação, é sem dúvida uma mulher que pertence a grupo muito reduzido desse Universo feminino que conseguiu quebrar “o teto de cristal”. Elas representam a luz que guia e que orienta a maioria das mulheres nessa luta do dia a dia pela autonomia económica, base da segurança e garantia para não depender de ninguém e, sobretudo dos homens, ou da família. Respeita à própria pessoa e respeita os outros para ser aceita, considerada e valorizada no seu ambiente e na sociedade, como pessoa livre e com sonhos a realizar. Inclusivo com capacidade para escolher com quem compartilhar a vida e com quem formar uma família. E se não der certo interromper essa vivência para ficar sozinha ou para iniciar outra vida com um companheiro diferente.
Atingir esse nível de liberdade e da emancipação requer muito sacrifício, mas pode ser um fracasso se o contexto sociopolítico não criar as condições propícias. Em qualquer profissão que pretende inserir-se a mulher tem que ser competente. Como mulher que vive na emigração, além da competência profissional, ela tem que ter algo a mais dos seus colegas italianos que exercem a mesma profissão. É assim e não leva muito tempo a compreender que a competição e coisas horríveis podem acontecer para travar o teu percurso profissional. Não há outro meio para defender e manter o próprio lugar se é do nível medio-superior que os teus colegas cobiçam. Torna-se stressante e cansativo, mas é uma luta que continua e vale a pena se é uma profissão em que sentimos realizadas e satisfeitas seja a nível pessoal ou profissional.
“As cabo-verdianas bem-sucedidas a todos os níveis profissionais na Itália, passaram todas por esse campo minado, até vencer a batalha.”
MI – Concorda com a lei da paridade que permite a integração das mulheres nas listas dos partidos políticos?
MLJ – Sim, estou plenamente de acordo com a lei de paridade porque é a resposta à luta e às reivindicações que as mulheres empreenderam desde a independência. Até agora o esforço e o sacrifício das lutas das mulheres em participar na vida política em pleno direito e igualdade com os homens não deram resultados esperados.
Em geral em qualquer parte do mundo (excepto nos países do Norte de Europa), as mulheres ocupam sempre o segundo ou terceiro lugar depois dos homens. Nunca vão deixar o poder a favor da democracia que implica a paridade de tratamento entre homens e mulheres. Obviamente, essa participação na política tem que ser a de pessoas competentes. Além de ser mulher, a única distinção que deveria prevalecer na escolha é mesmo a competência. Mulheres competentes sim. O mesmo para os homens, mas respeitando a lei da paridade para poder respeitar a composição da sociedade e elevá-la a um patamar de civilização que ficará na história. E nós mulheres com o peito carregado de orgulho de pertencer a um país, pequeno no tamanho, com poucos recursos, mas rico porque guiado pelos grandes Ideais.
“Cabo Verde não está muito interessado na participação política dos emigrantes”
MI – Entende que há lugar para essa participação da mulher emigrante?
Sejamos francos. O emigrante sabe perfeitamente que Cabo Verde não liga muito para a diáspora. Graças a Deus, o cabo-verdiano tomou rumo à emigração para melhorar a sua condição de vida e da família. E desenrascou bastante bem em todos os sentidos, conquistando um novo status social que lhe permite até contribuir para o desenvolvimento de Cabo Verde. O emigrante está confiante nos seus próprios recursos e consciente da sua contribuição à riqueza do país e consegue duma forma extraordinária distinguir o amor à terra ao dos governos que se alternam no poder. Quanto às legislativas 18 de Abril, acho que vamos ter ainda menos pessoas a exercer o direito de voto em Itália por causa do Covid-19 e também devido ao número muito baixo de recenseados este ano. Tivemos apenas 190 pessoas. Até agora, pelas informações que tenho, nenhum partido apresentou uma mulher como cabeça de lista para Europa e resto do Mundo. São sempre homens desde que a Gloria Silva foi eleita em 1991. Desde então os homens dominam a lista e representam a emigração no parlamento cabo-verdiano, infelizmente com poucas vantagens para a diáspora. Cabo Verde não está muito interessado na participação política dos emigrantes. Nesse contexto de desinteresse político pela diáspora como podemos falar da participação política da mulher na diáspora? Não há condições.
Quem é Maria de Lurdes Jesus
Nascida em S. Nicolau, Maria de Lurdes Jesus vive e trabalha em Itália onde exerce como Jornalista de profissional. Em 1973 inscreveu-se na Escola Portuguesa de Roma, onde fez o ciclo preparatório e o liceu. Depois de dois anos de luta conseguiu a sua inscrição na Universidade Salesiana e obteve uma bolsa de estudo do instituto Ítalo-africano até terminar os estudos.
Licenciou-se em Ciências das Edução e especializou-se em Comunicação Social. Dedicou-se durante 8 anos a Alfabetização de adultos, sobretudo, alunas cabo-verdianas, e também do curso de matemática do ciclo preparatório.
Após este percurso de professorado, foi convidada para fazer parte, do quadro de jornalistas da Radio Uno-Radio Televisão Italiana onde permanece até 2009. Trabalhou em revistas e projectos tendo entrevistado várias personalidades mundiais. Esteve sempre ligada a projectos da comunidade africana na italiana, em especial da cabo-verdiana. Foi ainda cofundadora e presidente da Associação das Mulheres Cabo-verdianas em Itália, presidente dell’ Archivio dell’Immigrazione. É autora do livro “Racordai. Sou de uma ilha de Cabo Verde” e agora coautora do livro: “Cabo-verdianas de Itália”, sob a chancela da Rosa de Porcelana Editora e que já apresentada em quatro principais cidades italianas.