Por Simone Cruz*
O pensamento científico sempre beneficiou da capacidade de equilibrar a abstração e o realismo. A criatividade e a técnica. Inspirando-se no seu interesse pela arte, Einstein assumiu que fazemos ciência com criatividade, quando comunicamos através de formas em que as conexões dos fenómenos não estão acessíveis à consciência. É esse fenómeno que potencia a autonomia do cientista.
O que me leva a partilhar esta reflexão no Mindelinsite com o público cabo-verdiano, em Cabo Verde e no mundo, é a minha preocupação com a evidente crise de autonomia da Ciência no âmbito do fenómeno da pandemia que designamos de “Covid-19”, verificada no planeta inteiro.
Não tenho dúvidas de que a Ciência enfrenta a sua maior crise de autonomia desde o período em que os EUA e a União Soviética aprisionaram todos os esforços de geração de conhecimento nos seus objetivos ideológicos de supremacia tecnológica (sobretudo militar), em resposta, precisamente, ao mesmo processo violentamente estabelecido durante o período histórico anterior através do regime liderado por Hitler e replicado, em escala menos industrial, por Mussolini, Franco e Salazar, ainda que estes dois últimos regimes fossem motivados, sobretudo, pela ganância de um número reduzido de famílias. No entanto, quem nos está a ler poderá colocar já duas questões: será esta uma visão excessivamente dramática? E, de forma mais cínica, pode também perguntar: para que necessita a Ciência de autonomia?
Exploremos a primeira questão. Nunca como desde março de 2020 a nossa geração observou um fenómeno com a intensidade da atual pandemia na dimensão da comunicação. Espaços noticiosos e horas de programação televisiva exclusivamente dedicados à pandemia durante vários meses. A teatralidade dos conteúdos e dos personagens, sendo uma asserção ao mundo da arte, foi sempre cuidadosamente produzida para gerar audiências como nunca atingidas desde a invasão do Iraque.
O drama é a tipologia teatral assumida para o desenrolar da narrativa da pandemia, cujo principal objetivo é o de gerar níveis elevados de audiência em contexto de feroz concorrência entre canais, sejam eles televisivos, escritos, radiofónicos ou digitais. Assim, só quando os níveis de audiência começaram a baixar é que os média sentiram necessidade de diversificação de conteúdos – por exemplo, os espaços noticiosos voltaram então a ter outras notícias. Durante este período, a narrativa mediatizada da pandemia esteve sempre aprisionada ao objetivo de impacto da audiência. Dramatizar passou a ser a única abordagem admitida. Desdramatizar passou a ser contraproducente ou até proibido.
Por outras palavras, o regime comercial dos média impôs limites à autonomia da Ciência na medida em que o conhecimento gerado nas ciências da saúde e, sobretudo, no campo da biologia, propõe – sempre! – a desdramatização dos fenómenos. Um cientista não pode ser dramático. Na comunicação científica, o drama não permite a objetividade e imparcialidade exigida. Portanto, na sua liberdade de pensamento, a contextualização equilibrada da ciência é incompatível com a dramatização necessária para o espetáculo dos espaços noticiosos massificados e limitados pelo imperativo das emoções.
Trata-se, conforme o autor Roland Barthes antecipou nos idos 1970 do império da notícia-espetáculo, de entretenimento, e que erradicou a objetividade e imparcialidade. Se Barthes ainda estivesse fisicamente entre nós ficaria arrebatado ao verificar que os espaços noticiosos passaram a ser, sobretudo, espaços de opinião moldada pela emoção do ator que opina.
Drama e opinião dramática são, assim, a estrutura dominante da comunicação sobre a pandemia. Esta é a abordagem coerente com os objetivos dos média aprisionados, por sua vez, no regime comercial dominado pelos impactos das audiências nas suas receitas. Simples de entender e de reconhecer. Então, será a interpretação excessivamente… dramática?
Porém, para que não julguem este texto como “negacionista”, um termo, aliás, abusivamente aplicado agora, dado ter sido definido para quem negava o genocídio nazi, esclarecemos que a perspetiva da Ciência livre será sempre a de interpretar factos sem os dramatizar.
Curiosamente, se a Organização Mundial de Saúde (OMS) – que, note-se, não é internacionalmente reconhecida como uma entidade científica, mas antes uma entidade política -, não tivesse em 2009 apagado na sua definição de pandemia a frase “deve verificar-se enorme números de mortes e doença” nem a pandemia do H1N1 nem a corrente pandemia seriam classificadas como… pandemias.
Porque é que antes da alteração da definição da OMS de 2009 a Covid-19 não seria uma pandemia? Porque até essa altura haveriam sempre causas de morte no planeta muito mais incidentes e que geram mais doença grave que o H1N1 (e variantes subsequentes) ou a Covid-19. A saber: doenças isquémicas, doenças pulmonares obstrutivas crónicas, efeitos do tabaco e do álcool, cancro, demências, acidentes e violência.
Neste ponto de vista, a ciência colocaria sempre a ênfase na desdramatização de uma doença que gera menos mortes e menos doença grave e daria prioridade a intervenções para as doenças que causam mais mortes e mais doença grave, o que dificilmente incluiria a Covid-19. Porém, no atual contexto dramatizado da teatralidade dos médias este argumento objetivo e imparcial está, de momento, proibido. Qualquer indivíduo que coloque esta perspetiva poderá ser submetido a um “linchamento” público (via redes sociais) e vítima de assassinato de caráter, de forma precisamente bem idêntica ao que aconteceu a quem fosse apelidado de comunista nos EUA ou capitalista na União Soviética durante o período que começamos por referir no início deste artigo. Assim, constatamos mais um ataque concreto à autonomia do cientista.
Consideremos então, a segunda questão: para que necessita a Ciência de ser autónoma? Sem nos embrenharmos no complexo debate da ética das ciências, coloquemos uma outra questão: no Ocidente ainda defendemos a ideia de que a Ciência serve o propósito de servir e contribuir para a felicidade e progresso da humanidade? Se a nossa resposta é sim, então falhamos redondamente durante o atual período de pandemia Covid-19.
Na verdade, as decisões políticas de resposta geraram, sobretudo, infelicidade e retrocesso no progresso da humanidade. Desse efeito, portanto, a ciência não poderá ser acusada porque nos média massificados a ciência não teve espaço. Os média massificados não conseguem ler ou entender a ciência sobre as doenças. Selecionam sempre e apenas o que promove a dramatização e pode ser “enlatado” no modelo e espaços de entretenimento da notícia-espetáculo.
Nas suas escolhas éticas, Einstein recusou colaborar com o Nazismo. Aceitou colaborar com o regime dos EUA na competição com a União Soviética. Fez escolhas. Estamos-lhe gratos. Porém, não nos esqueçamos que o próprio escreveu de forma idealista e romântica sobre o tema da autonomia da Ciência, colocando-a ao nível do indivíduo. Cada cientista toma as suas decisões e deverá ser livre para decidir o caminho da sua investigação. No entanto, também alertou as gerações futuras para o paradoxo desta visão. O indivíduo, cientista gerador de conhecimento, no equilíbrio com o coletivo na promoção do progresso da humanidade.
Porém, os contextos são agora ligeiramente diferentes. Por um lado, já não vivemos a narrativa da guerra fria e, por outro lado, verificamos o fortalecimento de um terceiro elemento nesta equação. A indústria. Assim, o advento e globalização da relação indivíduo-indústria-coletivo desafia o equilíbrio da autonomia da Ciência, em geral, e da biologia, ciências da saúde e farmacêuticas, em particular.
“A Ciência só avançou ao longo dos últimos duzentos anos por não haver um entendimento único. Adicionalmente, qualquer ramo científico morre quando se atinge “o consenso”. Só quem nunca fez Ciência tem dificuldade em entender isto.“
Na prática, a autonomia individual do cientista é filtrada pelos fatores económicos inerentes às indústrias. Sendo que, por um lado, o conhecimento científico é gerado com financiamento público (por exemplo, bolsas de investigação), por outro lado verificamos que a geração de riqueza a partir de conhecimento selecionado é financiado pelo sector privado industrial (sendo a China um caso especial e idiossincrático). O processo é legitimo. Porém, o termo “conhecimento selecionado” aprofunda a perceção de crise de autonomia da Ciência. A partir do momento em que determinado conhecimento selecionado é aprisionado pelos objetivos comerciais de uma qualquer indústria, que espaço terão os cientistas para propor alternativas de investigação ou de intervenção, dada a sua reduzida autonomia financeira? Precisamente, o desafio que enfrentou Nicola Tesla que, na sua autonomia científica, explorou alternativas energéticas que, durante a sua vida, não interessaram às indústrias dominantes…
Em síntese, não duvidemos que a teatralidade dos média massificados, numa dimensão mundial, impediu a ciência de guiar a resposta à pandemia. Ouvimos constantemente os seus atores afirmarem que “os cientistas não se entendem” e “é preciso haver consenso”, ficando claro que esses atores não entendem que os dois propósitos são absolutamente (!) incompatíveis com a Ciência. A Ciência só avançou ao longo dos últimos duzentos anos por não haver um entendimento único. Adicionalmente, qualquer ramo científico morre quando se atinge “o consenso”. Só quem nunca fez Ciência tem dificuldade em entender isto.
Constate-se também que a autonomia científica está limitada pelo acesso a financiamento para gerar conhecimento alternativo, o que o dito “consenso” dificulta.
Terminemos com uma nota de esperança. Einstein recomendou e demonstrou que o uso da criatividade poderá sempre libertar a Ciência. Essa é a grande força humana.
*Gestora e auditora em Saúde, estudante de mestrado em Qualidade Alimentar e Saúde.