O Tribunal de S. Vicente decide depois de amanhã a sorte de um agente da Polícia Nacional julgado hoje por um crime de ofensa qualificada à integridade física com arma de fogo, ocorrido em Fevereiro de 2012. Sete anos depois, António Gomes sentou-se no banco dos réus para recordar o sucedido, contar a sua versão da história, mas também ouvir a das pessoas que testemunharam o momento em que atingiu Lino David com um tiro nas costas, na localidade de Chã d’Alecrim. A vítima, que foi evacuada para tratamento em Portugal, acabou por ficar paralítica dos membros inferiores, vivendo desde então numa cadeira de rodas. E foi ainda com alguma revolta que entrou na sala de audiência para prestar depoimento.
Tudo aconteceu numa noite do mês de Fevereiro de 2012. Por essa altura, o agente António Gomes estava de férias, mas a enfrentar uma crise conjugal. Nessa noite, ingeriu um cálice de grogue em casa, saiu e foi para um bar, onde bebeu mais algumas cervejas. Consigo levava a arma de serviço. Como contou ao Tribunal, a dado momento telefonou algumas vezes para a ex-companheira e, quando esta atendeu, mostrou-se chateada com a sua insistência. No entanto, frisa, ficou a saber que a mulher estava numa festa e que a filha menor estaria com dificuldades respiratórias devido a bruma-seca. Assim, saiu do bar apressado em direcção à casa da ex-mulher. Como disse ao juiz, foi procurar a ex-parceira com a intenção de resolver o “problema” da filha de ambos, não se sabendo se em relação à saúde ou à guarda da criança.
O certo é que o agente, que estava à paisana e armado, ficou num passeio em frente à casa da mulher, com ar perturbado e com sinais de embriaguez. Ele próprio admite que estava agitado e que tinha ingerido alguma quantidade de álcool. No local, conta, apercebeu-se da presença de pelo menos três homens, apesar da pouca luz, e houve uma troca de palavras com eles, mas sem saber quem eram. “Começamos a falar à distância, mas não me lembro de como tudo começou e o que dissemos de concreto. Lembro-me, no entanto, de lhes ter pedido para me deixar em paz”, refere o arguido. Este tinha a arma na parte traseira das calças e ela caiu. Pegou-a, viu como estava o carregador e a segurança e meteu-a no bolso das calças.
Segundo o policial, o ambiente entre ele e as pessoas com as quais estava a falar aqueceu. Não sabe dizer ao certo o motivo, mas admite a possibilidade de uma delas se ter referido a ele de forma ofensiva enquanto agente. Nisso, dirigiu-se em direcção aos três jovens, quando um deles agarrou duas pedras e atirou-as na sua direcção. Esquivou-se e viu que o seu agressor tentava arranjar mais pedras. Foi quando desferiu o disparo.
António Gomes assegura que a sua intenção era atirar para o ar. Porém, ao pegar na arma com as duas mãos e desbloquear a segurança, terá premido o gatilho de forma inadvertida. Este acrescenta que só se deu conta que feriu a vítima ao se aproximar dela estatelada no chão. “Fiquei perturbado e comecei a chorar”, conta o agente da Polícia Marítima, que nega ter colocado a pistola ao ouvido de Lino e o ameaçado de morte enquanto estava caído.
“Pensamento positivo”
A vítima apresenta uma versão diferente. Segundo Lino David, deparou com António Gomes num passeio com uma arma na mão a dizer que ia matar a sua ex-companheira. Nisso, acercou-se do policial e disse-lhe para ter pensamento positivo e que amanhã era outro dia. A dado instante, prossegue, iniciaram uma discussão e foi intimidado pelo policial. Desse modo, foi procurar uma pedra para se defender e foi atingido nas costas por um disparo feito a cerca de 15 metros de distância. “Caí logo de cara para o chão. Depois ele colocou o cano da arma ao meu ouvido e disse-me para dizer o que aprendemos na tropa”, conta a vítima, que disse ter ouvido um amigo a gritar para o agente largar-lhe, o que só fez quando chegou a viatura do serviço de piquete da Polícia Nacional.
Lino garante que telefonou duas vezes para o 132 antes do incidente. Como se recorda, o policial estava agitado, a manipular a arma e a dizer repetidamente que ia matar a referida mulher. Entretanto, assegura que em nenhum momento viu essa mulher.
Lino afirma que estava sozinho com o policial quando foi atingido. Antes, disse, estava acompanhado de um amigo, mas que foi para casa nas proximidades. Foi este colega, acrescenta, que veio acudir-lhe quando foi ferido.
Testemunhos a favor da vítima e do arguido
A versão contada por outras duas testemunhas ora joga a favor da vítima, ora a favor do arguido. Por exemplo, asseguram que Lino realmente atirou duas pedras contra o policial, mas também que o agente ameaçou a vítima enquanto estava estatelada no chão. Da mesma forma, asseguram que o policial estava agitado, armado, com sinais de embriaguez e que efectuou o disparo a 15 ou mais metros de distância. Entretanto, nenhuma delas disse, porque não lhes foi perguntada, se o agente fez mira antes de disparar. E este era um ponto crucial, que podia ajudar o tribunal a determinar se foi um tiro acidental ou intencional, tal como defendem a defesa e a acusação, respectivamente.
Porém, essa falha foi pegada pelo advogado de defesa. “Ninguém aqui disse que viu o arguido apontar a arma e disparar. E estamos a falar de uma distância de 15 metros. Alguém perturbado e alcoolizado e faz um disparo nessas circunstâncias, não se pode concluir que agiu com intenção de atingir o alvo. Aqui entramos no campo do dolo, mas não ficou provada essa intenção”, realçou o jurista, que aproveitou ainda para lembrar que o policial não conhecia a vítima de lado algum. Lembra, entretanto, que o agente foi obrigado a recorrer à arma porque Lino tentou atingi-lo com duas pedradas. “Uma informação que não faz parte dos autos, o que estranhamos.”
Castigo à medida da culpa
Nas suas alegações, a defesa não pediu a absolvição do arguido, mas que seja responsabilizado à medida da sua culpa. O advogado entende que, passados sete anos, não faz sentido condenar o arguido à prisão efectiva, mas sim a uma pena suspensa. Lembra que António Gomes é considerado uma pessoa pacífica e que ficou perturbado com a ocorrência.
Para o Ministério Público, o policial negou a acusação com o intuito de diminuir a sua responsabilidade, mas a acusação entre que a sua versão foi contrariada pelos depoimentos da vítima e das testemunhas. “Só não negou ter feito o disparo por razões óbvias. Não tinha como fugir”, disse o Procurador da República, para quem é líquido que a vítima tentou acalmar o agressor, mas que este ficou mais exaltado. E que atirou na sequência de um desentendimento.
Na sua pespectiva, esse disparo não foi nada acidental. O crime, disse, jamais podia ser classificado como um acto de negligência. E aproveitou para enfatizar que, caso a bala tivesse atingido o lado do coração, o arguido poderia estar a responder por um homicídio. Por tudo isso, o magistrado do MP pediu a condenação do arguido. Daqui a dois dias, o juiz dirá da sua sentença.
Refira-se que pesava sobre o agente as acusações de falsificação de documento e simulação de crime, mas que se prescreveram, à luz do Código Penal vigente na altura dos acontecimentos. Os delitos deveriam ser resolvidos no espaço de cinco anos e já se passaram quase oito.
Kim-Zé Brito
Toda acção pelas costas e’ eticamente acto covarde reprovável .Um vez mais o álcool e o machismo faz estrago terríveis a ambas partes . Uma pena o ocorrido ,ambos jovens com futuro fracturado .