Aula monumental sobre Chiquinho em celebração aos 50 anos da independência de C. Verde

Maria de Lourdes Jesus
Foi um dia intenso dedicado à promoção da literatura Cabo-verdiana, na cidade Eterna, no âmbito do 50° Aniversário da Independência de Cabo Verde. O evento, organizado pela Tabanka onlus e com a adesão das associações cabo-verdianas d’Italia, teve lugar no domingo passado em Roma. Participaram no evento, coordenado pela jornalista “dei Media Vaticani” Alicia Araújo, o escritor José J. Cabral, o professor Siimone Celani da Universidade “La Sapienza” e o doutor Enzo Barca tradutor da versão italiana de Chiquinho.
Segundo o escritor J.Cabral, foi “um emocionante Chiquinhagem durante o qual o doutor Barca deu uma Aula Monumental, à altura do mestre Baltazar Lopes”. Foi uma longa e emocionante conversa literária através da apresentação dos três romances: “Chiquinho”, “Acushnet Avenue” e “Destino Aziago”. Baseada nessa “Aula Monumental”, que impressionou toda a plateia presente nesse dia, apresentamos aos leitores de Mindelinsite o texto integral do doutor Enzo Barca, com algumas perguntas, para facilitar a leitura.
Baltasar Lopes atravessa todo o século XX. Falar dele e da sua obra equivale, portanto, falar da história do arquipélago. Estudou no “Seminário-Liceu”, instituído em 1866 na Ilha de S. Nicolau, o que representa uma raríssima excepção na míope política em matéria de educação perseguida pela administração colonial portuguesa. Não se pode esquecer que, em geral, as políticas da educação nas então colónias do Ultramar, traziam o marco duma profunda diferença entre o sistema destinado aos “indígenas” e o destinado aos próprios portugueses, este último permanecendo igual ao administrado na “Metrópole”.
Maria Lourdes: Em que se baseava esse paradigma?
Enzo Barca: Baseava-se, esse paradigma, em pressupostos de matriz historicista que, utilizando a fórmula do “not yet”, confinou as populações não-europeias numa imaginária “antecâmara da história”, à espera de alcançar o estádio de civilização identificado com o dos próprios colonizadores. Voltando para Cabo Verde, depois de se ter formado em Direito e depois em Filologia Românica em Lisboa, Baltazar Lopes é, como todos sabemos, um dos fundadores da revista “Claridade”, cujo primeiro número vem à luz em 1936.
A revista interpreta a originalidade do projeto cultural dos jovens intelectuais do Arquipélago: o de pesquisar a “especificidade” do caso cabo-verdiano numa intersecção de pontos de vista diferentes que, da antropologia e da etnografia, se estendia até abarcar os estudos históricos e económicos, sociológicos e linguísticos. A literatura devia de qualquer forma “servir” a esse projeto, trazendo à tona materiais originais (como mostra o facto de a documentação folclórica ser um dos objetivos principais do grupo), à procura de um caminho próprio, de uma saída para se evadir dos moldes portugueses hegemônicos.
“Precisamos de sintonizar Cabo Verde com o Universo”, diz com ambicioso fervor um dos jovens amigos de Chiquinho. Uma sintonia em que o país aparecesse, no entanto, à luz da sua peculiaridade, num plano de igualdade frente a outros providos de estatutos de autonomia bem diferentes. Acontece assim que (como nas outras colónias portuguesas de África, as únicas que tiveram que conquistar a sua Independência ao preço duma guerra), o conseguimento a ideia de nação passe através da literatura muito antes de ser ratificada pela história. De forma que não parece excessivo nem sequer retórico incluir esses ainda-moços da Claridade (poetas-filólogos, folcloristas-narradores) no número dos pais fundadores da nação.
Como se identifica B. Lopes na revista Claridade.
Na “Claridade” B.Lopes se desdobra em múltiplas facetas, criando por um lado o heterónimo Osvaldo Alcântara, poeta, e por outro, experimentando-se a si mesmo como ficcionista no primeiro esboço do que virá a ser seu romance-símbolo. Seis capítulos do romance são publicados no primeiro e no terceiro número da revista; no entanto algumas páginas do “Chiquinho” já tinham saído em Portugal, no suplemento literário do “Diário de Lisboa”, com o título “O drama da terra”, parte de uma narrativa inédita cujo provisório título era “Expansão”, conforme o testemunho de Alfredo Margarido. Esse seria, ao que se sabe, a certidão de nascimento de “Chiquinho”, tanto mais sensacional uma vez que seriam essas as primeiras páginas consagradas pela imprensa portuguesa à literatura cabo-verdiana, um ato talvez inconsciente com que se lhe reconhecia uma autonomia. “Chiquinho” sai em volume só em 1947, pelas Edições Claridade, mas é muito provável que tivesse sido completado dez anos mais cedo.

Qual è o contexto da época em que se narra Chiquinho
O pano de fundo histórico em que se insere a narrativa é decididamente diferente daquele eufórico em que as ilhas, destacadamente S. Vicente, tinham vivido a segunda metade do século XIX. Em 1850 a construção do Porto Grande de Mindelo, o qual funcionará principalmente como “coaling station” para a navegação transatlântica, vai trazer em S. Vicente, ao longo dos 40 anos de maior atividade, inúmeros cargueiros assim como a maioria dos paquetes organizados pelas grandes companhias de navegação europeia que, na época da chamada “grande emigração” levam para os portos brasileiros, argentinos e uruguaios todos os que fogem a fome do campo, italianos como alemães, franceses como polacos.
Há também italianos que por aqui ficam, procurando explorar os recursos desse entreposto comercial recém-nascido na nova configuração atlântica: os Poleses, Cavassas, Frusonis, Bonuccis, abrem pequenas e grandes empresas de comércio no Mindelo, contando principalmente com os passageiros das companhias que partiam do porto de Gênova. O italiano Giobatta Morazzo funda aqui um estaleiro de reparação naval (como refere António Leão Correia e Silva no seu “Nos tempos do Porto Grande de Mindelo”), atraindo vários compatriotas seus.
Quais foram as vantagens da criação do Porto Grande em S. Vicente?
A criação do Porto Grande projeta Mindelo e S. Vicente para uma contemporaneidade em que se aprofundará a distância que João Lopes já tinha sublinhado no primeiro número de Claridade entre a alma africana, filha do patriarcalismo agrário, mais viva em Santiago e nas ilhas de Sotavento, e essa alma urbana, moderna e internacional, projetada para a Europa, que acaba de nascer em S. Vicente, ao mesmo passo que nasce um proletariado urbano e operário e que conflui para o Mindelo uma vaga migratória interna vinda das outras ilhas agrárias do Arquipélago: S. Vicente era para mim a terra em que a civilização do mundo passa em desfile. Estava farto de ouvir falar no Porto Grande, no seu movimento, nos vapores de trânsito, nas imagens da Europa que passeiam pela cidade. Queria ver o mundo.
E como era S. Vicente na altura em que chegou Chiquinho?
As condições do Porto Grande, na altura em que Chiquinho cá chega, são radicalmente mudadas, ao mudar do quadro histórico geral. A navegação internacional desloca-se gradualmente para as Canárias, onde o porto de Las Palmas, além de praticar preços mais favoráveis, proporciona uma assistência técnica mais avançada. O colapso deste modelo de desenvolvimento, que, no entanto, parecia corresponder a uma vocação “natural” do Arquipélago acrescenta-se a dois fatores de crise por assim dizer endêmicos nas ilhas, a seca e a emigração para logo incrementar de forma catastrófica os seus efeitos.
Que histórias conta o livro Chiquinho?
As diferentes facetas da figura de B.L., assim como se projetaram na sociedade cabo-verdiana do seu tempo, podem-se localizar no romance: ti Baltas, nhô Balta e o doutor Baltasar andam ao lado do jovem protagonista, ao determinar a prevalência ora duma marca de estilo afetiva, meiga (que é a que predomina na narrativa), ora duma marca civil, ora duma marca que se poderia designar de ético-programática.
Bem como se alternam entremeando-se, com seus registros peculiares, o poeta e o advogado, o ficcionista e o pedagogo, o filólogo e o etnólogo, o folclorista e o intelectual engajado, o músico (pois sabemos que também foi compositor) e até o esportista (ele próprio tinha sido corredor e gostava de futebol, golfe e cricket). O cuidado documental percorre todo o romance que, afinal, se revela também (e esse é outro dos seus méritos) uma extensa coleta de tradições, costumes, de crenças e ditados populares, de lendas e lenga-lengas, de brincadeiras, jogos infantis (de rezas e fórmulas de esconjuro. Mas o “Chiquinho” é, além de mais nada, um enorme reservatório de estórias.
Quase receoso de perder fragmentos da memória comum, Lopes insere na história principal uma série infinita de micro-estórias: muitas são estórias do mar, porque o mar representa sempre no romance o elemento libertador, o lugar do risco, mas também o da aventura, a emergência do inédito em contraposição à estagnação da vida camponesa, marcada pela passividade da espera e pela inércia. Encontram-se no mar sereias lindíssimas. Do mar, no entanto, chegam também os piratas, e os “pateados”, ou seja, aqueles desgraçados que pactuaram com o Diabo, o Inominável, cujo nome é tabu e tem de ser acompanhado infalivelmente por fórmulas mágicas, exorcismos e gestos apotropaicos: eles conhecem os segredos das montanhas, dentro das quais se escondem outros tantos fantasmagóricos palácios, com tudo o que o pobre consegue imaginar. Ainda estórias de feiticeiras que fazem as crianças tremer: mau-olhado, ligaduras, feitiços, cada tipo de bruxaria; almas penadas que se apoderam de corpos ignaros e para desbaratar as quais é preciso socorrer-se de sortilégios sigilosos. E estórias negras vindas da costa da África (as estórias- parábolas protagonizadas por animais que personificam características e defeitos humanos, como as de Ti Lobo e de Chibinho) que se entrecruzam com contos vindos diretamente da Idade Média europeia, como as estórias do ciclo arturiano, com Carlos Magno, Roldão, Oliveiros, e “o grande mofino do Galalão”.
O programa próprio dos claridosos “levar à ribalta da história o caso cabo-verdiano com a sua tonalidade especifica”, além de ser posto em prática com atitude onívora para com todas as formas da cultura do Arquipélago, é nitidamente enunciado por Andrezinho, o alter-ego engajado de Chiquinho, em todos os pormenores, confluindo em fórmulas condensadas (“Estamos fartos de ouvir cantar a beleza abstrata nesses rochedos e seca e de fome!”, “Precisamos escrever coisas que não pudessem ser escritas senão em Cabo Verde, coisas que não pudessem ser escritas, por exemplo, na Patagônia. Não nos importa a Escandinávia com os seus fiordes. Interessa-nos o carvoeiro que não trabalha em S. Vicente há muito tempo.”) ou em cortantes slogans nos moldes dum manifesto (“Vamos condenar os fiordes da Escandinávia a degredo perpétuo!”).

Qual é a língua literária elaborada pelo B. L. em Chiquinho?
A língua literária elaborada por B.L. em “Chiquinho”, embora não derrogando aparentemente as normas escritas do português europeu, vive imersa num caldo de cultura crioulo, mais marcado nos diálogos, que impregna, porém o texto inteiro, ao revelar uma unidade e uma autonomia linguístico-cultural perfeitamente em acordo com a completa autonomia do universo cabo-verdiano representado no texto. (“citando ocGermano Almeida: “Chiquinho foi escrito em português, mas nós sentimos que jamais poderia ter sido escrito por um português”). Tanto mais devido à plasticidade do crioulo e às suas influências no português de Portugal, já “Chiquinho” pode ser considerado um dos primeiros testemunhos da evolução do próprio português nos países que o adoptarão como língua oficial, língua ainda em processo de fixação, sobretudo na oralidade, que não deixa porém de intervir na escrita dos grandes autores angolanos e moçambicanos.
E a identidade? Como é definida pelo B. L.?
“Identidade” pode ser hoje uma palavra envenenada. Se uma cultura pode ser comparada a um mapa, ou melhor dito, a um conjunto de mapas que nos orientem na complexidade do mundo, uma cultura baseada num forte conceito de identidade (como está acontecendo de mais em mais na Europa) é uma cultura empobrecida, uma vez que reduz drasticamente a complexidade e substitui às relações, aos enredos, às nuances, ao envolvimento, às implicações recíprocas, uma lógica de meras divisões, de separações, de contraposições. Uma lógica esquemática, que contrapõe pura e simplesmente “nós” e os “outros”.
Como conseguiram os intelectuais dessa época superar o isolamento político e geográfico das ilhas?
Num plano mais geral outro elemento de surpresa, para quem lê o livro do lado de lá fora, é a maneira como a circulação das ideias e a relação fecunda com movimentos surgidos em países longínquos (em Portugal, em França, no Brasil) consegue, já na época de “Chiquinho”, colocar Cabo Verde num sistema cultural global e interativo que ultrapassa o isolamento a que, quase por definição, as colônias são submetidas. Um “cosmopolitismo periférico”, poderíamos dizer. Um dos métodos mais eficazes para corto-circuitar o isolamento foi o sistema de empréstimo que vigorava nas ilhas, fazendo com que um livro que chegasse num dado local do Arquipélago pudesse ser lido por uma cadeia de leitores solidários, favorecendo a difusão da leitura num território desprovido de bibliotecas e tipografias.
Assim como é surpreendente a busca de um novo sentido para a emigração, da forma como vem sendo exemplificada no percurso que leva o protagonista a escolher o caminho das Américas. Com o “…caminho das Américas.” já introduziu a pergunta inevitável da emigração. O próprio conceito de emigração sofre um processo de détournement, abdicando do sentido cristalizado de escolha obrigatória para o deserdado, o “damné de la terre”, até se valorizar enquanto etapa de crescimento pessoal, até ser imaginado como “viagem de formação”, uma espécie de contraponto proletário ao “grand tour” das classes abastadas. Nas suas fantasias sobre a viagem migratória Chiquinho não vê apenas a perda dos afetos e dos hábitos que o radicam a uma terra, mas também a expectativa de ter acesso a um conjunto de saberes com que poderá se projetar num mundo que, através da deslocação de corpos e mentes, já contêm uma antecipação do nosso mundo global.

Ainda hoje a emigração em Cabo Verde é vista como uma forma de resgate social?
E, de facto, que há de mais revolucionário de uma pessoa subtrair-se a seu destino marcado de subalternidade na condição de migrante, de, através do estudo, aperfeiçoar o seu raciocínio, adquirir e mostrar, na sociedade em que chega, a sua competência para intervir nela como membro ativo e portador de novos pontos de vista? É o que fizeram muitos dos meus compatriotas na estação das grandes migrações para as Américas em finais do século XIX, é o que continuam a fazer os emigrantes cabo-verdianos na Europa de hoje em dia, tão apavorada com a tal “perda da identidade”, com esse medo do estrangeiro de que uma parte política (com sempre mais partidários – diga-se de passagem tira proveito para alimentar preconceitos e divisões.
O Doutor Barca conhece há muitos anos os cabo-verdianos na cidade de Roma. Qual è a imagem que tem da comunidade?
A comunidade cabo-verdiana em Itália tem, a meu ver, o grande mérito (e que a particulariza, por entre outras comunidades imigradas mesmo muito mais numerosas) de pôr em primeiro plano a questão cultural, não encerrando-se em clubes fechados a celebrar só a saudade da terra, mas abrindo os seus círculos para que os próprios italianos possam conhecer sua música, suas danças, sua cozinha, sua literatura. Numa palavra, sua cultura. Uma atitude “revolucionária”, desde que subverte a imagem do migrante como problema que os políticos tendem a dramatizar.
E qual é o peso da cultura na luta de Libertação?
No entanto, mesmo sendo incontestável que a luta de libertação das colónias africanas de Portugal foi feita com as armas e a organização político-militar, não deve ser omitido que o progresso das consciências na base deste processo se deu também pelo recíproco contato e interação, nos lugares metropolitanos normalmente proibidos aos colonizados, de pessoas de outro modo não visíveis a não ser nos contextos previstos pela rígida segmentação geográfica colonial. E disso é um exemplo luminoso o percurso de Amílcar Cabral que já reivindicava nos seus escritos o papel da cultura na luta pela Independência. É precisamente com esse “inédito social”, já prenunciado nas páginas de “Chiquinho” , que nos encontramos a lidar nas nossas sociedades, sem ser capazes de achar uma síntese justa e responsável.
Fotos: Marzio








