Sonia Almeida
O recuo do Governo e a pergunta essencial
Após forte pressão popular, a decisão de conceder tolerância de ponto apenas à ilha de Santiago foi finalmente revista. Agora, o direito estende-se a todo o país. Mas a questão essencial permanece: porque foi necessário o clamor do povo para que se fizesse o óbvio?
O vício do centralismo
Este episódio, aparentemente trivial, expõe, mais uma vez, o vício mais persistente da nossa República: o centralismo visceral que há décadas corrói a ideia de Cabo Verde como nação plural e arquipelágica. O que aconteceu não é um simples erro administrativo. É o reflexo de uma mentalidade política que continua a confundir o Estado com a capital, e a capital com o país.
Praia como centro e fronteira
A Praia tornou-se o epicentro da decisão e, pior ainda, da definição do que é o cabo-verdiano legítimo. O resto, as ilhas, as suas vozes, culturas e realidades, é tolerado, não integrado. É útil, mas periférico. Serve para legitimar a retórica da unidade, recolher votos e justificar fundos, mas permanece excluído da verdadeira mesa das decisões.
Um desequilíbrio estrutural e cultural
O desequilíbrio é estrutural, mas também ontológico e cultural. As outras ilhas orbitam em torno de uma “verdade oficial”, emanada do centro, onde a legitimidade se autoalimenta do costume e da conveniência. Assim, o que deveria ser um país plural e dialogante, transforma-se numa pirâmide invertida, sustentada pela desigualdade e pela húbris de uma elite que se confunde com o Estado.
O dogma da unidade nacional
A “unidade nacional” é, neste contexto, mais dogma do que ideal. Diz-se “unidade” para silenciar a diferença e diz-se “nação” para perpetuar o privilégio. E toda e qualquer tentativa de denunciar esta distorção é imediatamente travada pela velha acusação de “bairrismo” – esse expediente retórico tão eficaz para deslegitimar a indignação e reduzir o protesto à caricatura do ressentimento. O termo “bairrismo”, assim usado, é uma técnica de silenciamento, uma arma do discurso hegemónico para manter tudo como está, em nome da paz nacional, claro.
As ilhas que perdem força
Entretanto, as realidades falam por si: empresas históricas, como a Shell/Vivo Energy ou a Enapor, foram subrepticiamente transferidas de São Vicente para Praia, enfraquecendo o tecido económico e simbólico de uma ilha que foi, outrora, motor do país. Nada é inocente nesse processo. Tudo converge para um modelo de poder centrípeto, que suga recursos, oportunidades e visibilidade das margens para o centro.
As ilhas que perdem força
A recente marcha-atrás do Governo não apaga o essencial: foi preciso o grito do povo para lembrar às autoridades que Cabo Verde não é sinónimo de Santiago. E isso, por si só, é uma derrota moral do Estado. Porque o que se fez, mais do que corrigir uma injustiça, foi reconhecer, sob pressão, que a injustiça é a norma.
A autonomia como necessidade ética
A verdade é que Praia não vê o resto do país como parte de si, mas como um mal necessário — uma constelação de apêndices convenientes para extrair legitimidade democrática, fundos internacionais e matéria eleitoral. Nada mais. É por isso que a questão da autonomia das ilhas já não é apenas uma reivindicação política: é uma necessidade ética e de sobrevivência cívica. Mas é preciso, antes de mais, maturidade política e moral para aceitar que a autonomia não divide: equilibra; não ameaça: amadurece; não fragmenta: responsabiliza.
A pergunta final
Um Estado que teme a autonomia das suas partes é um Estado que não confia em si próprio. E um país que aceita essa lógica de submissão hierárquica já perdeu a substância do que significa ser uma comunidade política.
Por isso, o debate que importa não é se a autonomia é possível, mas se a sua ausência é ainda tolerável. Porque um país que precisa de ser pressionado para agir com justiça, não governa: reage. E o centralismo, mesmo quando corrige os seus erros, continua a ser o erro original — a forma mais educada e persistente da tirania.