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“São Vicente – a ilha que se recusa a cair”

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Américo Costa*

“O trovão era tambor de guerra, o relâmpago, lâmina de prata rasgando a escuridão. E a ilha, por horas, deixou de ser porto de música e luz: foi abismo de água e silêncio; foi grito preso no peito; foi medo com rosto de vizinho, de amigo, de filho…”

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Na noite de 11 para 12 de agosto de 2025, o céu desceu sobre São Vicente com a fúria dos mares antigos. As nuvens, pesadas como séculos, romperam-se sobre a ilha como jarros imensos e a chuva incessante, brutal, quase viva, escreveu o seu nome em cada rua, em cada parede, em cada coração que naquela madrugada não dormiu.

O trovão era tambor de guerra, o relâmpago, lâmina de prata rasgando a escuridão. E a ilha, por horas, deixou de ser porto de música e luz: foi abismo de água e silêncio; foi grito preso no peito; foi medo com rosto de vizinho, de amigo, de filho…

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Mindelo tornou-se mar dentro de si mesma. As avenidas viraram rios castanhos, carros boiavam como barcos sem rumo, paredes abriram-se à força da corrente.

Em Salamansa, a ponte de Pedra Rolada, velha guardiã de passos e regressos, cedeu, como um gigante fatigado, cortando o caminho para a Baía das Gatas, onde a beleza dormia e acordou em sobressalto.

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Em Ribeira Bote, Alto-Bomba e Praça Estrela, o destino tocou com mão pesada: oito vidas apagadas, sete levadas pelo abraço cruel das águas, uma pelo raio que desceu do céu.

E ainda três nomes permanecem pendurados no vento, nem vivos, nem mortos, à espera de serem encontrados pela maré da esperança.

Mas nessa mesma noite, quando a água parecia ter mais força que o homem, o povo de São Vicente mostrou-se maior que qualquer tempestade. Vizinhos partiram janelas a machado para arrancar grávidas e crianças ao afogamento. Mulheres formaram correntes humanas para salvar idosos. Braços desconhecidos seguraram outras mãos como se fossem da mesma família. E, naquela hora, foram.

Doze ficaram sem teto. Centenas sem luz, sem água, sem notícias. Mas ninguém ficou sem o abraço de outro cabo-verdiano.

Sim, a tempestade mostrou as cicatrizes de erros antigos: ruas que não bebem a chuva, pontes velhas que se cansam, casas que crescem onde o chão não devia permitir. Mas nenhuma ilha se mede apenas por cimento, nenhuma vida por tijolo.

São Vicente é morna e funaná, é peixe fresco na grelha, é criança a correr na rua, é mar que ensina paciência e coragem. São Vicente é alma que canta mesmo quando chora.

E de Portugal, que também sabe o que é perder ao mar, vem agora o abraço do irmão que não chega de mãos vazias. Navios carregam víveres, aviões trazem medicamentos, mas sobretudo, traz-se a certeza: ninguém fica para trás.

Lisboa, Porto, Faro, Braga, Tomar enfim todas as cidades portuguesas têm agora um pedaço de Mindelo no peito. Haverá um dia breve em que a ponte de Pedra Rolada se levantará de novo, em que as ruas de Mindelo brilharão ao Sol, em que as casas reconstruídas serão muralhas contra o futuro.

E nesse dia, as crianças correrão pela Praça Estrela sem saber que o chão onde brincam foi um rio de lama que tentou levá-las. Porque há coisas que nenhuma tempestade pode afogar: o orgulho crioulo,
a música que nasce no peito, o cheiro do mar que regressa todas as manhãs, o sorriso aberto de um povo que sabe que viver é resistir.

São Vicente não caiu.
São Vicente levantou-se.
E nós, portugueses e cabo-verdianos, levantamo-nos com ela.

Às oito almas que partiram: memória eterna.
Aos que ficaram: força sem medida.
A São Vicente: o meu amor e solidariedade eternas .

*Deputado A.M.T, Portugal.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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