Nelson Faria
A essência da democracia representativa assenta num princípio aparentemente simples, a da vontade da maioria que deve prevalecer. Contudo, há uma distorção perigosa que se instalou na prática política cabo-verdiana, ao nível autárquico, transformando a “maior parte” numa falsa “maioria absoluta” com poderes desmedidos. Esta incongruência, alimentada por um “costume” pernicioso e pela letargia do sistema judicial, corrói os alicerces democráticos que juramos defender.
O cenário é conhecido, um partido conquista mais mandatos do que os outros concorrentes individualmente, entretanto, menos que a soma dos outros juntos, uma maioria relativa, sem alcançar a maioria absoluta dos lugares elegíveis e auto consagra-se “dono do poder absoluto”. Isto por força de um “costume” profundamente arraigado, esse grupo atribui-se automaticamente a Presidência da Câmara Municipal e, frequentemente, agora legalmente pelo Novo Estatuto dos Municípios, até a Presidência da própria Assembleia Municipal. Age como se a maioria relativa conferisse uma legitimidade
indiscutível e poderes equivalentes aos de uma maioria absoluta, o que é uma falácia lógica democrática. A vontade da maioria (expressa por mais de 50% dos eleitos) é silenciada pela vontade da maior parte (que pode representar significativamente menos de 50%).
O perigo reside precisamente na banalização deste “costume”. A lei, ao não ser suficientemente explícita e detalhada em mecanismos processuais para garantir que a Presidência da Câmara reflita efetivamente a vontade da maioria dos representantes eleitos, torna-se permissiva. Abre espaço para interpretações forçadas que servem aos interesses imediatos do partido mais votado, mas que desvirtuam o princípio fundamental do governo da maioria.
Esta distorção é agravada pela inércia dos Tribunais. Processos que questionam esta prática e que poderiam estabelecer jurisprudência crucial para aclarar a correta interpretação da lei e defender a vontade da maioria efetiva, arrastam-se indefinidamente. A falta de uma decisão judicial oportuna e assertiva perpetua o vácuo interpretativo, permitindo que o “costume” antidemocrático continue a imperar. A morosidade judicial torna-se, assim, cúmplice involuntária da erosão democrática.
O cerne da questão, na minha perspetiva, remonta a uma falha de conceção no Estatuto dos Municípios, tanto o anterior como o atual. A Constituição da República de Cabo Verde prevê claramente apenas dois órgãos autárquicos: a Câmara Municipal e a Assembleia Municipal. O Presidente da Câmara Municipal não é um órgão Constitucional autónomo, por isso, na minha perspetiva, deveria ser um membro eleito na Câmara, responsável por presidi-la. Portanto, a eleição do Presidente da Câmara, se não for com a maioria absoluta dos votos, a eleição deveria refletir, inequivocamente, a vontade da maioria
dos membros eleitos para a Câmara Municipal.
Infelizmente, o Estatuto, ao não estabelecer um mecanismo claro, eficaz e obrigatório para que o Presidente da Câmara seja eleito por maioria absoluta dos votos diretos ou indiretos dos eleitos municipais para o órgão Câmara Municipal, e ao permitir que a prática do “direito automático” da lista mais votada se instale, abdicou deste princípio.
A Presidência da Câmara, com os vastos poderes executivos que o Estatuto dos Municípios lhe atribui (e que são desproporcionais face ao seu suposto estatuto de mero presidente de um órgão colegial), não deve ser “presumida” pela maior parte numa maioria relativa. Deve ser conquistada através do apoio expresso da maioria dos representantes eleitos na Câmara Municipal.
Se verdadeiramente aspiramos a uma democracia robusta e legítima, onde o poder emana do povo e é exercido segundo a sua vontade coletiva expressa nas urnas, não podemos tolerar que a vontade da maioria efetiva seja suplantada pela vontade da maior parte relativa. É imperativo romper com o
“costume” antidemocrático que confere poderes absolutos a quem apenas obteve uma pluralidade de votos. Nesta linha, penso que deve ser considerada uma revisão do Estatuto dos Municípios neste ponto para clarificar e garantir que o Presidente da Câmara Municipal seja sempre eleito, de forma indireta,
pela maioria absoluta dos membros da Câmara Municipal.
Simultaneamente, os Tribunais devem assumir a sua responsabilidade constitucional, julgando com celeridade os processos pendentes e estabelecendo jurisprudência que reponha a primazia da vontade da maioria real. A tirania da maioria relativa não pode ser o nosso legado.