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A manufatura simbólica na Educação: Um olhar sobre a desigualdade no Brasil e além

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Cídio Lopes de Almeida*

O objetivo desta resenha de opinião é elaborar um esboço reflexivo sobre o sistema educativo brasileiro, a partir da ideia teórica de economia simbólica, com o intuito de levantar uma hipótese-problema sobre a forma como a precariedade da educação pública é discursivamente abordada. A hipótese central sugere que a falta de recursos e qualidade na educação, amplamente narrada, é, na verdade, uma manifestação de um exercício de poder que se alimenta de uma sociedade profundamente desigual, sendo essa discursividade de precariedade uma forma de operar do poder manifesto na estrutura social existente.

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Como resultado deste esboço analítico, argumenta-se que a desigualdade social brasileira encontra no sistema educacional sua instância privilegiada de manufatura, sendo este um dos principais agentes na perpetuação dessa desigualdade histórica. O método adotado para esta resenha é de caráter bibliográfico, com base na obra de Bourdieu e na análise de uma frase-ideia de Darcy Ribeiro sobre a educação no Brasil.

A proposta de uma dinâmica da manufatura simbólica, tal como pensada por Bourdieu na obra A Economia das Trocas Simbólicas, nos permite tomá-la como referência para algumas hipóteses sobre a educação em geral e, particularmente, o ecosistema da educação básica brasileira. Afinal, a escola é o local da manufatura simbólica de maior lastro social entre nós, comparado apenas com a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) enquanto instância de manufatura simbólica. Sendo que por extensão territorial e capilaridade, a escola de educação básica poderia ser apenas comparada com a Igreja
Católica Apostólica Romana (ICAR). Seriam as “redes sociais” lugares de manufaturas de nossos tempos? Deixaremos essa questão para outro momento.

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Uma delimitação que nos interessa sobre o tema símbolo ou simbólico é dada por Mario Ferreira dos Santos: “E toda a natureza, em sua linguagem muda, expressa-se através de símbolos, que o artista sente e vive, que o filósofo interpreta, e o cientista traduz nas grandes leis que regem os fatos do acontecer cósmico. [SANTOS, 1959, p. 9]. “Podemos, a partir desta ideia, considerar que a realidade humana tem no símbolo um ponto fundamental e distintivo das coisas em geral. Não é por acaso que as grandes
tradições religiosas presentes na nossa cultura brasileira e em geral fazem uso corrente de símbolos. A forma como nos ligamos entre nós, humanos, e com as coisas à nossa volta passa por este engenhoso instrumento.

Para explicar ou explorar uma faceta do conceito economia simbólica, uma metáfora pedagógica pode nos ajudar a adentrar nesta esfera pouco habitual da nossa reflexão. Para a produção de uma bebida destilada [o gougre em Cabo Verde ou a cachaça no Brasil], facilmente imaginamos que o processo implica vários estágios, desde a plantação da cana-de-açúcar, a manufatura da bebida e, depois, a distribuição. Sabemos que a produção é feita por alguns, distribuídas por outros e consumida por outros.
Alguns desconhecem os processos, mas consome, outros não consomem, e assim por diante. Esta imagem de produção material nos levará para outra manufatura, a simbólica, que é tratada na obra de obra de Bourdieu sob vários ângulos.

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Para o autor, todo o sistema social em que estamos imersos e do qual fazemos parte é recheado de lugares, tipos, e formas de produção e distribuição simbólica. Ele destaca vários “lugares” [Estado, Escola, Igreja, habitus.] e “produtores” [burocratas, professores, sacerdotes, a pessoa em geral] de símbolos. São como fábricas e seus funcionários especializados; lá não pode entrar qualquer um, mas apenas alguém
“autorizado” a manufaturar este e aquele símbolo [produto], destinado a ser consumido por um determinado público [os adeptos desta religião/igreja], e proibido a outros.

Deste jogo, destaco algo particular ao que Sergio Miceli [2007] diz sobre o pensamento de Bourdieu nesta obra. Parafraseando, o que importa não é só o que se fala, mas como se fala. De certo modo, podemos estender esta ideia para quem fala [o político, o padre, o policial, o professor].

Ainda neste panorama sobre a economia dos símbolos, segundo Bourdieu, há outro ponto importante. Em algum momento, houve um salto ou modificação entre o trabalho material e o trabalho simbólico. Este passo é relevante na medida que nele há um tipo de ocultamento da percepção das pessoas [não especializadas] de como ocorre a sua manufatura, bem como de um valor associado a ele que o coloca acima do trabalho material, estabelecendo uma hierarquia de valor não só do produto simbólico, mas
também para quem o produz. Assim, vemos que certos professores ocupam o lugar de produtores de conhecimento [universitários; de certos países; de certas editoras/revistas], enquanto outros, especialmente da educação básica, são considerados consumidores do saber estabelecido, impresso em certos livros adotados pelas redes educacionais, ou em certos assuntos e modos de abordagem estabelecidos no currículo oficial.

Desse cenário estabelecido em modo de resumido, avançamos para pensarmos alguns temas que julgamos pertinentes para a educação básica brasileira em particular, embora creio não seja muito distinta nas demais comunidades lusófonas. Destaca-se, nos circuitos da comunicação social, sobretudo das grandes empresas de mídia, a constante menção de que a educação pública é carente de todo tipo de recursos, assim como a necessidade perpétua de formação dos professores e professoras. Vejamos, a luz da obra em apreciação, que essa falta pode ser considerada como um jogo de dominação. A falta
destacada é inerente às dinâmicas de manufatura simbólica; ela, por vezes, está relacionada a aspectos reais, como falta de dinheiro, prédios adequados, material didático, mas é, sobretudo, uma falta simbólica estrutural da realidade. E será sob essa ótica que poderemos compreender por completo a ideia de Darcy Ribeiro: “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.

A educação básica brasileira é compreendida nos seguimentos educação infantil, educação fundamental e ensino médio. Em grande parte, estão ligados ao governo local [prefeituras/BR ou câmaras municipais/CV] e aos governos estaduais [provinciais]. Em casos raros, como o do Colégio Dom Pedro II [que tem da educação infantil até mestrados], colégios de aplicação ligado às universidades federais e colégios para filhos de militares, podemos encontrar uma oferta diferenciada de educação pública ligado ao governo federal brasileiro. O mais comum, corrente e universal são as escolas públicas das prefeituras e dos estados. A falta, performada por todo lado, sobretudo por aqueles não são especialistas no assunto educação, faz referência a este sistema universal, hoje com 2,3 milhões de professores(as) e 47,3 milhões de estudantes.

Se aplicado a ideia de Bourdieu sobre a manufatura simbólica, o sistema educacional é peça fundamental para compreender a realidade social brasileira. Sem rodeios, um país com uma brutal diferença social, com números tais como 60% das pessoas vivendo na pobreza [enquanto temos a maior taxa de juros reais do mundo], com números exorbitantes de analfabetos funcionais [podendo chegar quando associado aos analfabetos totais aos 90%], não pode deixar de lado as ideias de Darcy Ribeiro, que associadas a ideia de Bourdieu, pela qual podemos denotar um projeto bárbaro de poder.

A desigualdade social brasileira encontra nos sistemas escolares um importante parceiro nesta perpetuação histórica da desigualdade. Não é possível compreender a persistente ideia de falta sobre este sistema educacional como sendo apenas o “que é dito”, mas “como e dito” e “por quem é dito”. O que irá revelar um compromisso histórico em manter o desigual na esfera da dignidade humana.


*Doutorando em Ciências das Religiões, Faculdade Unida de Vitória, bolsista FAPES.

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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