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A escrita pública como ruptura com o autoritarismo

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Por: Cídio Lopes de Almeida*

“O tema da liberdade tem nuances variadas e de certo modo não poderá ser reduzida a esta ideia equivocada de consumo. Aliás, se for apenas esta a liberdade que importa, com argumentos de que todos estamos submetidos a necessidades que não podemos abrir mão, já não temos mais liberdade, mas uma tirania do consumo.

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A tão propalada liberdade vai muito além da lógica de consumo. Ser livre não pode ser para ser apreendido pelas tramas do consumo massivo, que se vinca pela constante performance da falta, que só poderá ser preenchida pela aquisição infinita de mercadorias.

O tema da liberdade tem nuances variadas e de certo modo não poderá ser reduzida a esta ideia equivocada de consumo. Aliás, se for apenas esta a liberdade que importa, com argumentos de que todos estamos submetidos a necessidades que não podemos abrir mão, já não temos mais liberdade, mas uma tirania do consumo. Sem com isto descurar a ideia de que como seres biológicos estamos submetidos às demandas desta esfera do viver humano, mas que, apesar deste limite, sempre produziu rupturas como característica da nossa humanidade.

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Na tentativa de tratar aqui o tema da liberdade para além desta chave da liberdade de consumo, a resenha tem como objetivo justamente demostrar a relação entre a não escrita como privação da liberdade e certos traços de autoritarismo difuso como parte da nossa cultura lusófona. Não escrever para alguns acadêmicos na lusofonia, como uma importante fração deste universo cultural linguístico, pode ser considerado como hipótese de um jeito disfarçado de se manterem como um tipo ideal de papel social que se vende como autoridade? Porém, a escamotear um autoritarismo, que ao fim, priva a liberdade de escrita? E neste castelo de orgulho, que é de um ideal de eu, a autoridade se mantêm enquanto mistificada, construída no entorno da pessoa do acadêmico e não no que ele torna público pela escrita.

Aliás, por este traço do silenciamento, talvez seja possível construir uma outra hipótese, que indaga sobre os motivos da proeminência da Maçonaria, enquanto envolta na mítica do segredo/mistério em terras brasileiras. Em que os “importantes”, isto é, aqueles indivíduos que veem a si como melhores que os outros, assim performam na vida da comunidade por justamente participarem de uma “sociedade secreta, misteriosa e poderosa”.

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Para avançar a minha resenha, retomo a ideia de Freud (O Eu e o Id, 1923) sobre a formação do eu. Para o fundador da Psicanálise, em resumo, temos o id, enquanto impulsos básicos e instintivos, o Eu (eu ideal), que faz a mediação destes impulsos com a vida social ou com o mundo exterior e o Superego (ideal de eu), enquanto instância da subjetividade que internaliza os valores sociais. Digamos que este último é uma instância que se forma nas relações morais da familia e da sociedade em que o indivíduo se situa.

Em termos sociais, o ideal de eu já é fruto das dinâmicas sociais-familiares, digamos, é algo que vem de fora e se impõe à pessoa, esperando dela certos papéis, certos comportamentos. E neste processo, destacamos que este papel não é capaz de satisfazer todos os impulsos circunscritos ao Eu, à pessoa singular. E deste desencontro, certos comportamentos poderão surgir, entre eles o tal silêncio de si, o medo de se expor, sobretudo pela escrita. Pois expor-se é mexer com questões “mau acomodadas” na subjetividade da pessoa.

Ao menos dois motivos levariam a este abster-se do debate. Primeiro porque o ideal vindo de fora deixa muitas partes de si de fora. Colocar-se em público é arriscado, pois pode mostrar tais desencontros, os quais apreendo que não deveriam ser públicos, e se o faço, será motivo de vergonha. A segunda aposta é um apego a um dado papel que apesar de imposto, parece gerar um certo lucro ou prazer, mesmo que ele pareça estrangeiro e dissonante consigo. Assume-se o papel e para garantir sua atuação, mostra-se de modo mais racionalizado em si, do que um equilíbrio saudável dos impulsos de si e o referido papel. O que está sendo performado no autoritarismo no geral é esta tentativa de esconder estas fraturas do Eu.

Apesar de parecer complexo, parece-nos que em grande medida os papéis que a persona na lusofonia desempenha, entre os quais o do intelectual professor, tendem a serem fruto desta idealização dissonante de si. E na dissonância entre uma realidade concreta e esta pautada por ideais advindos de alhures, resta-nos que as contradições são escamoteadas no silêncio e no cariz autoritário, por que é montado no cerceamento do dizer, que irá dizer justamente a contradição. Os papéis sociais acabam por serem uma tentativa de emular uma realidade não existente. Para este tipo de expediente dissimulado, a ideia de sublime como categoria estética do filósofo Imanuel Kant (Crítica da Faculdade do Juízo – Kritik der Urteilskraft, 1790) parece cair bem. Sublime seria a experimentação de uma grandiosidade fora do alcance humano. A ideia é sedutora, pois, como já aludimos, de fato o humano ainda que condicionado, mostra-se historicamente experienciando situações que o arranca dos seus limites e até certo ponto, ficcionando realidades, por vezes grandiosas, capazes de o levar a lugares muito além de uma mera condicionalidade.

Esta desconfiança de que o nosso silêncio é situado em dadas configurações históricas da nossa sociocultura, sobretudo pela escassez dos nossos intelectuais em tornar público os seus escritos, parece ganhar mais realidade, para além de Freud, a partir de uma ideia de José De Souza (A Elite do Atraso: da escravidão ao Bolsonaro, 2019). Para o professor, o modelo socioeconômico baseado no extrativismo e o trabalho escravo é o fundamento explicativo da nossa cultura brasileira. Destaca que a estética kantiana foi operacionalizada para justamente negar estas condições a qual habitamos por séculos e que ainda ecoa na forma da brutal desigualdade entre nós brasileiros. Foi ainda utilizada para negar mesmo a ideia de uma filosofia expressa em língua portuguesa.

O mesmo expediente foi estendido para o pensamento filosófico, em que não reconhecem nesta chave de silenciamento como filosófico o pensamento de um Eugênio Tavares (1867 – 1930) ou Agostinho da Silva (1906 – 1994). Se associamos o tema de ideal de eu com esta realidade abjeta, como um traço elementar da lusofonia atlântica, parece-nos que houve historicamente um tipo de ideal de eu que procurou ajustar esta dissonância. O esforço para sustentar racionalmente algo insustentável, pois assente na coisificação de outros humanos, mostra-se em forma de autoritarismo, disfarçado de autoridade, bem como em silenciamentos diversos. Não só pelo cultivo da pessoa autoridade inatingível, mas pelo impedimento histórico de vozes que ousem filosofar sobre estas dissonâncias. A não escrita abre um espaço que é ocupado pela autoridade silenciosa. E sem palavras, não se corre o risco de mostrarem-se contraditórios.

Neste quadro, e como pedagogo a atender crianças com “problemas” [na minha apreciação o problema era dos adultos] escolares, no contexto de uma clínica psicanalítica na cidade de São Paulo, não foi raro os casos em que estudantes com problemas de domínio da escrita, tinham uma figura paterna autoritária no seu convívio. Não dá para fazer uma assertiva científica, contudo, como início de uma investigação, considero esta hipótese, pois ela se mostra e se lança por ter sido recorrente em múltiplos casos clínicos/pedagógicos.  O autoritarismo neste contexto parece atuar como um silenciamento da condição básica de nós humanos em exprimirmos. O ato de se colocar para foram, portanto, exprimir-se, implica sentir-se seguro para tal. Sem um ambiente familiar e social amoroso, capaz de acolher, escutar, reina o medo. E em ambiente de medo, recolhemos sem si, ao ponto de nem para si sermos mais, pois é nesta interação para fora que existimos.

Por isto que em Paulo Freire (Pedagogia da Autonomia, 1996) e outros filósofos da educação (Banquete de Platão), a amorosidade é o fundamento para expressão de si, que se mostra pela linguagem. Por uma capacidade de se exprimir discursivamente em ambiente amoroso. No pavor do autoritarismo não temos escrita e muito menos magistério. Agostinho da Silva como educador, como alguém que disse ser mais valioso “fazer-se poema”, era antes de mais amoroso como todos aqueles que foram seus alunos.

Porém, o ser amoroso não é uma realidade tão vasta como gostaríamos. Existia aqui no Brasil dos anos 1980 a prática do professor que “puxava a orelha, batia com régua”, como resquício de um passado pedagógico da nossa cultura. Não temos mais lugar para artigos ou produções científicas sobre educação que dê lugar para a violência como parte dos processos educacionais. Daí ser uma aberração extremistas as tais “escolas cívicos militares” tem sido objeto de governos fascistas Federal ou dos Estados. Nestes modelos se coloca de modo explicito o pavor da disciplina militar, própria da guerra, que gera o silenciamento, como deleite dos autoritários de extrema-direita.

Não somos ingênuos, por problemas sociais e pela privação de recursos financeiros, ainda existe uma certa violência no ambiente escolar. A escola num país desigual como o Brasil traz estas contradições para dentro de si, e por vezes a parte visível deste processo é uma comunicação violenta por parte dos burocratas da educação, bem como a reação de alunos a ameaçar os professores. Ademais, este é um tema não só da lusofonia brasileira, creio que é um tema do modelo de civilização sob o capitalismo, como podemos constatar os constantes massacres em escolas nos USA, sendo o último na Apalachee High School, em Winder, na Geórgia.  De todo modo, a escola como lugar de controle pode funcionar como silenciamento e a manutenção de uma cultura da não escrita.

Conclui-se nesta resenha que o ato da escrita é uma atividade de estreita relação com a sensação de liberdade. O medo da escrita, por outro lado, é a percepção do indivíduo de um desconforto em mostrar-se perante uma comunidade. O silêncio, para além dos aspectos mais pessoais, também podem ser considerados sob a hipótese de que se trate do melhor expediente de variados níveis de autoritarismos. Diante tudo isto, que os intelectuais, sobretudo os poetas, e acadêmicos, sejam efetivos companheiros da juventude, não seus algozes. Que nossas habilidades de pensamento e escrita, adquiridas pela maturidade, possam ser postas a serviços, de forma amoroso, das aspirações da juventude. Cheia de vigor e criatividade desejos de simplesmente viverem em plenitude. Que nossa escrita incentive a escrita deles, escritas de si.

*Doutorando em Ciências das Religiões – Faculdade Unida de Vitória, ES, BR – Bolsista FAPES

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Kimze Brito

Jornalista com 30 anos de carreira profissional, fez a sua formação básica na Agência Cabopress (antecessora da Inforpress) e começou efectivamente a trabalhar em Jornalismo no quinzenário Notícias. Foi assessor de imprensa da ex-CTT e da Enapor, integrou a redação do semanário A Semana e concluiu o Curso Superior de Jornalismo na UniCV. Sócio fundador do Mindel Insite, desempenha o cargo de director deste jornal digital desde o seu lançamento. Membro da Associação dos Fotógrafos Cabo-verdianos, leciona cursos de iniciação à fotografia digital e foi professor na UniCV em Laboratório de Fotografia e Fotojornalismo.

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