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Psiquiatra “culpa” transtornos de personalidade – sobretudo sob efeito de substâncias ilícitas – pelo aumento da violência em S. Vicente

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O psiquiatra Aristides da Luz chama a atenção para o perigo de se responsabilizar pessoas com doença mental por crimes, sobretudo os mais violentos, devido ao estigma social. Na sua perspectiva, a doença mental tornou-se hoje no “bode expiatório” de todos os males sociais. O médico reagia, nesta entrevista, a esta tese aventada, inclusive na imprensa, no caso do duplo assassinato de sábado em S. Vicente no mesmo bairro, crime  supostamente praticado pelo mesmo indivíduo. Segundo o psiquiatra, existem transtornos de personalidade, que não é doença e nem incapacidade para discernir, mas pode levar a comportamentos desviantes, principalmente sob efeito de substâncias psicoativas. Para Aristides da Luz, o principal problema de saúde pública em Cabo Verde é o consumo de álcool e outras drogas, que se desdobra em problemas mentais, alta incidência de câncer, AVC e violência. 

Por: Constânça de Pina

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Mindel Insite: Há dias ocorreu uma tragédia em S. Vicente, com a morte à facada de duas pessoas no mesmo bairro zona e tendo como presumível autor a mesma pessoa. Como explica este tipo de crime? Pode ser resultado de um surto momentâneo ou de perturbações mentais?

Aristides da Luz – Um crime, por si só, não é normal, mas não quer dizer que o suposto autor é um doente com problemas mentais. Se eu faltar respeito a uma pessoa, por exemplo, não é normal, mas não significa que tenho um problema mental. É preciso fazer a separação. Não é normal uma pessoa tirar a vida de outra ou a si mesma. Mas isso não quer dizer, automaticamente, que tem uma doença mental. 

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MI – Qual o seu propósito em fazer esta separação em relação ao comportamento das pessoas? 

É necessário porque esta tendência em se relacionar comportamentos anormais com doenças de foro psicológico está muito enraizada na sociedade. Existe um estigma em relação a doença mental. E São Vicente é uma ilha rica em apelidar e fazer abusos com estas pessoas por causa do estigma que existe em relação a doenças mentais. Este estigma está no Serviço de Saúde, na Justiça, na Comunicação Social, na Educação, em suma, está na sociedade mindelense como um todo. Impedimos essas pessoas de integrar a nossa sociedade, partindo do princípio que são agressivas, incapazes, violentas.

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MI – Como combater o estigma sobre pessoas com perturbações?

Primeiro temos de respeitar o direito dessas pessoas. Por exemplo, não faz sentido um indivíduo ter uma doença mental e, por isso, não ter os mesmos direitos das pessoas aparentemente saudáveis, designadamente integrar-se na sociedade e fazer a sua vida o mais normal possível dentro da sua doença. É verdade que esta doença pode limitar-lhe em alguns aspectos, mas em outros não. Por exemplo, uma pessoa com limitação motora também não consegue fazer determinadas coisas, mas tem os seus direitos preservados. Não é incapaz. Quando falamos de incapacidades, temos sempre de trazer as percentagens. Ou seja, temos de dizer se a incapacidade é de 10, 20 ou 30 por cento. 

MI – Mas, voltando ao duplo homícidio, o que levaria um indivíduo “normal” a ter um comportamento tão violento? Isto tendo em conta que era até então, segundo testemunhos, uma pessoa calma e prestativa, que frequentava as residências das vítimas…  

Quero esclarecer que temos doença mental e transtornos, mais especificamente transtornos de personalidade. Não conheço o caso em concreto, mas há pessoas que têm transtornos de personalidade, que não é uma doença e nem uma situação que as incapacita para discernir, mas pode levar a comportamentos desviantes. Estes comportamentos não as tornam incapazes de saber o que é certo e o que é errado. Por exemplo, temos casos de pessoas com transtornos que enganam outras com frequência ou que roubam. Pessoas que, como dissemos no crioulo, têm “boca doce”, ou seja, que manipulam. 

Agir sob influência de substâncias psicoativas

Há outras situações que, infelizmente, podem levar a comportamentos violentos, nomeadamente estar sob efeitos de substâncias psicoativas. Temos estado a falar que há cada vez mais pessoas com doença mental nas ruas de São Vicente. Percebemos de imediato que o comportamento destas pessoas não é normal. A pergunta que se coloca é: porquê? Há um aumento de incidência das doenças mentais ou de alterações de comportamento provocados pelo consumo?! 

Hoje tudo é doença mental. Se virmos uma pessoas a dormir na rua, se está com fome, suja ou comete um crime é porque tem doença mental. Mas isso não corresponde à verdade. Temos de ter atenção a todos os males sociais, que acabam por resultar em comportamentos desviantes. E, à semelhança deste caso mais recente, pode acontecer outro a qualquer momento porque infelizmente estamos em um país onde o consumo de drogas tornou-se muito frequente. Há uma banalização desse comércio.

MI – Há uma percepção quase que generalizada de que houve um aumento da violência em S. Vicente. Hoje qualquer altercação envolve armas brancas ou de fogo e morte. O que leva as pessoas a partir para a agressividade, muitas vezes por razões banais ou insignificantes?

– Há vários fatores que podem contribuir para isso. Temos, por exemplo, o factor mídia. Agora temos a possibilidade de ver filmes violentos, temos a influência das redes sociais, onde muitas vezes surgem movimentos que incitam os jovens e adolescentes a este tipo de comportamento. Estamos a vivenciar um fenómeno muito frequente, inclusive a nível mundial, de automutilação. Em outros tempos, a automutilação era restringida a alguns transtornos de personalidade, mas agora é feita por imitação, sobretudo em grupos. É facto que temos atualmente a vantagem da informação estar mais acessível, mas também temos todos os aspectos negativos por detrás de toda esta informação.

MI – Até que ponto esta percepção do aumento da violência está relacionada com um acesso “praticamente” livre às substâncias ilícitas?

É lógico. É uma das principais causas desta violência. No início, desvalorizam o consumo, dizendo por exemplo que a “padjinha” é uma droga leve. Temos esta mesma atitude em relação ao álcool, que é aceite socialmente. Mas temos de pensar que tipo de álcool existe neste momento em Cabo Verde. Há dias faleceu-me um familiar de 56 anos que, visivelmente, parecia ter um grande consumo de álcool, o que não era verdade, segundo uma pessoa que o conhecia bem. Este caso alertou-me, aliás, para as muitas substâncias que são adicionadas ao “grogue”. O principal problema de saúde pública em Cabo Verde, do meu ponto de vista, é o consumo do álcool e das outras drogas, que se desdobram em problemas mentais, alta incidência de câncer, Acidentes Vasculares Cerebrais e violência. 

MI – E qual é o posicionamento das autoridades da saúde sobre esta questão?

Temos de separar as questões e ver a saúde como um produto social e falar das nossas limitações. Por exemplo, a fiscalização não é responsabilidade das autoridades da saúde. Podemos denunciar, mas não temos poder para fiscalizar. Em Cabo Verde temos a tendência de verticalizar as coisas somente para a saúde que, repito, é um produto social. Por mais eficiente que seja o nosso Sistema de Saúde, não consegue responder a mais de 10 por cento do estado de saúde dos utentes. Os restantes 90 por cento estão fora do sistema: a fiscalização, o ambiente, a educação, as condições sociais e económicas das pessoas, entre outros. Por exemplo, fala-se muito no bullying, cujas deficiências provém sobretudo da educação em casa. Temos de ensinar as nossas crianças a aceitar que todos são diferentes. São todas estas questões que constroem a sociedade que temos atualmente. 

Cometer atrocidades e continuar a viver normalmente

MI – Voltando ao caso em referência, ainda não há certezas se o indivíduo detido é o autor dos dois crimes. Mas poderia nos esclarecer se é possível uma pessoa cometer uma atrocidade desta natureza e depois continuar a viver normalmente antes de repetir o mesmo tipo de crime?

Pode sim acontecer se a pessoa sofre de um transtorno de personalidade. Mas, repito, não é uma doença mental. A probabilidade de um indivíduo com doença mental cometer um crime do tipo é raríssima. As pessoas com doença mental são mais vítimas do que causadores de violência. Infelizmente, criamos esta ideia que uma pessoa com doença mental é violenta. A doença mental neste momento está a ser um “bode expiatório” para todos os males sociais que temos em Cabo Verde.

MI – Não seria perceptível alguma mudança em um indivíduo com transtorno?

Cada um tem a sua personalidade. Mas todos temos algo das diferentes personalidades. Há pessoas com transtornos visíveis, ou seja, mostram que são violentas e agressivas. E há outras que não são. Temos um caso ilustrativo de um criminoso famoso em Cabo Verde, mas que era tido como uma pessoa pacata. Nestes casos, os crimes são pontuais. Praticam um crime e depois retomam a sua vida, sem levantar suspeita. Não estou a dizer que seja este caso atual, até porque não conheço o indivíduo. Mas, reafirmo, transtornos de personalidade podem levar as pessoas a cometerem este tipo de crimes, mas não impedem nunca que estas sejam responsabilizados por seus atos. Há países, caso dos Estados Unidos, em que estas pessoas são condenadas a prisão perpétua ou mesmo quando libertadas são monitoradas porque sempre podem reincidir e repetir o mesmo tipo de crime.  

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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