Imaginem que tenho uma loja de bolachas e, todos os dias, o meu melhor cliente é o Monstro das Bolachas. Ele compra quase tudo o que produzo. Agora imaginem que, de repente, esse cliente decide que vai começar a fazer as suas próprias bolachas, e, se quiser continuar a comprar as minhas, terá de pagar uma taxa extra. Difícil, não é? Foi exatamente isso que Donald Trump fez com o resto do mundo ao aplicar essas tarifas. E o impacto foi (e está a ser) bem maior do que parece à primeira vista.
Por: Christian Lopes
Inicialmente, as tarifas impostas pelos EUA aumentam diretamente os custos de importação, afetando empresas estrangeiras que pretendem exportar para o mercado americano. Quando uma empresa estrangeira tenta vender para o mercado americano, precisa de pagar uma taxa extra. Para manter as suas margens de lucro, essa empresa aumenta o preço final. Quem paga? O consumidor americano. Resultado: inflação. Este fenómeno atinge especialmente as classes mais baixas e médias da sociedade americana, reduzindo o seu poder de compra.
Mas não são apenas os americanos a sofrer. Os produtores de outros países também ficam a perder. Como os EUA são um dos maiores mercados consumidores do mundo, deixar de vender para lá é um golpe duro. Voltando à analogia: é como se o Monstro das Bolachas deixasse de ser cliente da minha loja. Vou ter dificuldade em escoar a minha produção, ficar com bolachas a mais e contas por pagar.
Mas porquê Trump decidiu fazer isto? Há aqui uma jogada estratégica. Ao dificultar a entrada de produtos estrangeiros, ele está a tentar obrigar as empresas a mudarem-se para os EUA. Ou seja, se quiserem evitar as tarifas, que produzam em solo americano, o que potencialmente aumentaria a receita fiscal e revitalizaria o setor industrial interno. É uma forma de trazer de volta a indústria que, durante anos, foi transferida para a China e outros países com mão-de-obra mais barata.
Ademais, o objetivo subjacente a esta política é usar estas tarifas para arrecadar mais receitas e, com isso, cortar impostos sobre o rendimento da classe média. Há 100 anos atrás, os EUA financiavam o Estado maioritariamente com tarifas, não com impostos sobre rendimentos. Contudo, este método atualmente enfrenta desafios muito maiores, dado que a despesa pública passou de cerca de 2,5% do PIB há um século, para mais de 20% atualmente. E portanto, repetir essa receita é um desafio enorme.
Complementarmente, se olharmos para os índices macroeconómicos dos EUA, estes não são particularmente simpáticos. Neste momento, o défice orçamental ronda os 7% e a dívida pública americana ronda os 120% do PIB. Portanto, a ideia também implícita passa por, em termos macroeconómicos, equilibrar as balanças das finanças públicas americanas, nomeadamente em termos de défice orçamental, e se possível, utilizar isso em amortizações da dívida pública americana que está em níveis astronómicos.
No imediato, a Europa sofre. As exportações ficam mais caras e as empresas perdem mercado. As tarifas Trump vão representar inicialmente uma adversidade económica significativa devido à dependência europeia do mercado americano. Mas, a médio e longo prazo, isto pode ser uma oportunidade de ouro para repensar a indústria europeia. A dependência de produção externa é um dos pontos fracos da Europa, e talvez esta “ameaça” vinda dos EUA seja o empurrão que faltava para relançar uma estratégia de reindustrialização. E com o fortalecimento da indústria vêm também outras áreas: defesa, tecnologia, energia. A Europa pode ganhar soberania, criar empregos, revitalizar a classe média. E os EUA, paradoxalmente, também ganham, pois muitos dos equipamentos de defesa ainda são comprados às empresas americanas.
A China foi um dos principais alvos das tarifas de Trump. Sendo um dos maiores exportadores para os EUA, estas medidas colocarão pressão sobre as empresas chinesas. No curto prazo, empresas chinesas vão enfrentar desafios acrescidos para manterem margens de lucro e volume de exportações. Contudo, a médio e longo prazo, estas tarifas podem também acelerar o processo chinês de diversificação dos seus mercados, aprofundando as relações económicas com países da Ásia, África e América Latina. E isso levou precisamente a que o governo chinês respondesse com rapidez, intensificando a sua estratégia de autossuficiência tecnológica e industrial, reforçando iniciativas como o projeto “Made in China 2025”.
De certa forma, as tarifas impulsionaram ainda mais o crescimento estratégico da China, que não ficou parada. Pelo contrário: adaptou-se.
A África, embora menos falada neste contexto, também sente os efeitos. O continente africano depende fortemente da exportação de matérias-primas e bens agrícolas, e restrições comerciais impostas pelos EUA podem levar à queda nos preços destas commodities devido à redução da procura global. Contudo, há aqui também uma oportunidade. À medida que empresas globais procuram alternativas aos mercados chinês e americano, a África pode posicionar-se como um destino atrativo para novas indústrias, oferecendo mão-de-obra competitiva e recursos naturais abundantes. Isso poderia fomentar um crescimento económico sustentado e diversificado no continente.
Portanto, o que Trump está a fazer é uma jogada arriscada de xadrez. Pode resultar, mas também pode falhar. Muitos países, como a Argentina de Javier Milei, optaram por negociar diretamente com Washington em vez de retaliar. E talvez essa seja a chave. A melhor estratégia para muitos países não será retaliar diretamente, mas procurar ajustes pragmáticos nas políticas comerciais, abrindo espaço para parcerias e alianças alternativas. As tarifas são, no fundo, uma peça de negociação estratégica, que pode ser analisado através da teoria de jogos. E neste jogo, nem sempre ganha quem grita mais alto, mas sim quem pensa mais longe.
Embora existam consensos na teoria económica de que as tarifas são, em geral, prejudiciais ao crescimento global, os efeitos específicos das tarifas Trump apresentam um quadro mais complexo. Mas, se analisarmos com cuidado, podemos encontrar oportunidades escondidas. Para os EUA, podem significar reindustrialização e mais autonomia económica. Para a Europa, África e outras regiões pode ser um estímulo para reinventar a economia, reforçar cadeias de valor internas e criar alternativas sólidas.
Como qualquer boa história, esta também tem vilões, heróis e mudanças inesperadas. Cabe agora aos protagonistas (os países) decidirem como querem escrever o próximo capítulo.