Arlindo Rocha
No dia 25 de setembro de 2025, durante uma palestra sobre o “Setembro Amarelo”, campanha dedicada à valorização da vida e à prevenção do suicídio, a magnífica exposição da Psicóloga Thatiana Michelsem proporcionou-me um momento de raro insight. Ao abordar os fatores de risco associados ao suicídio, um pensamento surgiu, articulando dois conceitos que, à primeira vista, podem parecer dissociados: a experiência do suicida e sua relação com o tempo.
Compartilhei brevemente essa intuição ao final da palestra e, posteriormente, com minha esposa, que carrega consigo a experiência profunda do luto pela perda de um irmão. É uma reflexão em estágio inicial, pois, tive apenas uma tarde e uma noite para refletir sobre o assunto! Não sou especialista na área, no entanto, considero esta reflexão urgente e necessária. Por isso, gostaria de desenvolvê-la com cuidado e sensibilidade que o tema exige.
Não tenho a pretensão de esgotar o assunto ou de encontrar unanimidade, pois, de antemão, considero-a algo improvável quando se trata da complexidade da experiência humana. Meu objetivo, antes, é semear uma perspectiva que possa, para algumas pessoas, funcionar como um instrumento de ressignificação, abrindo caminho para a superação, revelando faíscas de esperança onde antes parecia existir apenas escuridão.
A proposta central é entender que o indivíduo que contempla o suicídio pode vivenciar uma radical distorção em sua relação com o tempo. Nós, seres humanos, somos temporais por natureza; nossa existência é uma caminhada finita que se desenrola no tempo.
Para a maioria, o tempo contém uma dialética: é o campo tanto da dor, do sofrimento e do desgaste quanto da cura, do aprendizado, da resiliência e da superação. Conseguimos, ainda que com dificuldade, e com muito diálogo, visualizar um futuro onde a dor atual possa ser transformada ou sublimada.
Filosoficamente, este diálogo ocorre com ideias de filósofos como Filósofo alemão, Martin Heidegger, para quem o ser humano é um “ser-no-tempo” com uma temporalidade caracterizada pela abertura ao futuro, à historicidade e à finitude. Em contextos de sofrimento profundo, de depressão, de luto e das crises existenciais, essa temporalidade abre espaço para a angustiante percepção da finitude e da mortalidade.
Como seres de e no tempo, a sensação de “paralisação” ou de “metamorfose” pode ser dois fatores paradoxais que envolvem a experiência do suicida com o tempo. A paralização pode aumentar o sentido do vazio enquanto que a metamorfose, ou seja, a autotransformação, pode levar, paradoxalmente a uma
abertura para o entendimento.
No entanto, para a pessoa imersa em um sofrimento psíquico intenso, esse diálogo colapsa, onde o futuro deixa de ser percebido como uma possibilidade de mudança. A perspectiva temporal pode se contrair drasticamente, fixando-se em um eterno presente da agonia, ou seja, da agonia do “eterno retorno” nietzschiano, da agonia decadente que vê no sofrimento, na dor, na tristeza, na desesperança, algo a ser negado, superado ou redimido.
Pessoas com tendências suicidas, vivem um estado, conhecido na psicologia como constrição cognitiva que estreita e reduz o campo da percepção temporal. A mente, toldada pela dor e pelo sofrimento perde a capacidade de acessar lembranças reconfortantes ou de projetar cenários alternativos. O sofrimento não é mais um episódio dentro de uma linha do tempo; ele se torna a própria linha do tempo.
Nesse contexto, a ideia de que “o tempo cura” soa como uma ironia vazia. Quando o futuro é percebido apenas como a perpetuação de uma dor insuportável, o ato suicida pode ser erroneamente interpretado como a única saída para interromper um fluxo temporal que se tornou fonte de tortura.
Paradoxalmente, é como se o indivíduo, na tentativa desesperada de aniquilar a dor, sentisse a necessidade de primeiro aniquilar o tempo, aquele tempo futuro que, em sua percepção, só promete mais sofrimento.
É crucial enfatizar que esta não é uma falha de caráter ou fraqueza, mas sim uma consequência compreensível de condições de saúde mental que podem incluir depressão grave, transtorno de estresse pós-traumático, entre outras. A sensação de desesperança é um dos mais fortes preditores de risco suicida.
Portanto, a intervenção mais vital é justamente reintroduzir a possibilidade do tempo. A escuta empática, seja de um amigo, um familiar, ou um profissional de saúde mental (psicólogo ou psiquiatra), pode atuar como uma ponte para fora desse presente constrito. Ao validar a dor sem julgamentos e oferecer suporte, esse acolhimento ajuda a reconstruir, mesmo que minimamente, a ponte para um futuro onde outras experiências, inclusive as de alívio e de ressignificação, são possíveis.
Assim, talvez possamos reformular o ditado popular “enquanto há vida, há esperança” para “enquanto houver a possibilidade de um amanhã, há espaço para a intervenção e a transformação”. O tempo, aliado a suportes adequados, pode de fato ser um grande agente de cura, mas ele não age sozinho. Requer a coragem de quem sofre em buscar ajuda e a responsabilidade coletiva de oferecer uma rede de apoio segura e livre de estigmas.
Se você está lutando contra pensamentos suicidas, ou se é um sobrevivente desta experiência, saiba que a sua dor é real e profundamente respeitada. A sensação de que o futuro está fechado é uma ilusão criada pelo sofrimento, não um fato.
Permitir-se conectar com o outro, buscar ajuda especializada, é um ato de coragem que pode reabrir as portas do tempo. Pequenos lapsos de alívio, momentos de conexão genuína e a interrupção do ciclo de dor são possíveis. A sua história ainda não terminou de ser escrita, e há apoio disponível para ajudá-lo a encontrar, um dia de cada vez, novos significados para continuar a narrá-la.
Niterói – 26/09/2025