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O Submarino do Porto Grande: A lenda que o vento do Mindelo não deixou morrer

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Américo Costa

Há ilhas que vivem de histórias. Outras, de ventos. São Vicente vive dos dois. Entre o rumor do Atlântico e o perfume da nostalgia, ergue-se uma das narrativas mais antigas e encantatórias da sua memória colectiva: o ataque de um submarino alemão ao Porto Grande, em plena Primeira Guerra Mundial.

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Durante cem anos, essa história foi contada de boca em boca, com o mesmo brilho nos olhos com que se contam os milagres. Diziam os mais velhos que, numa manhã de 1917, um submarino germânico emergiu das águas do Porto Grande e perseguiu dois cargueiros vindos do Brasil. Que houve disparos, pânico e fumo. Que os navios transportavam alimentos destinados à ilha faminta. E que o comandante alemão, com o coração rendido a uma mulher cabo-verdiana, teria poupado vidas por amor.
Essa é a lenda. Bela, trágica, quase cinematográfica.

Mas a história, a verdadeira, tem outro tom. E foi o historiador Jorge Morbey, filho de São Vicente e docente na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, quem lhe devolveu o contorno exato. No seu livro O ataque de um submarino alemão no Porto Grande de São Vicente durante a I Guerra (1914-1918), editado pela Livros do Oriente, Morbey partiu de uma lembrança de infância: as histórias que a avó, Annie Florence Morbey Ferro (1870-1952), lhe contava da varanda da casa voltada para a baía.

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Durante anos, essa memória ficou adormecida. Mas o centenário do episódio, a 2 de novembro de 2017, despertou-lhe a curiosidade. Com o rigor de um investigador e o afecto de um neto, mergulhou em arquivos navais, manifestos de carga e relatórios militares. O que encontrou não foi o romance épico que o povo preservou, mas uma sucessão de factos frios e documentos secos: sim, houve um ataque alemão; sim, dois cargueiros brasileiros foram atingidos. Contudo, os navios transportavam apenas peles e café em grão, não alimentos. E não existe qualquer registo de um amor proibido entre o comandante e uma mulher da ilha.

Para Morbey, a explicação é mais profunda e mais humana. “É a psicologia da fome”, escreve ele. Quando a fome se prolonga, a mente cria histórias de abundância, de dádiva e de compaixão, formas de suavizar a dureza da realidade. A lenda, portanto, nasce como um remédio da alma: transforma o medo em esperança, a guerra em amor, o submarino em símbolo.

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Cabo Verde conheceu secas que dizimaram gerações inteiras. E foi nesse deserto de carência que o imaginário mindelense construiu o seu oásis narrativo. O ataque do submarino tornou-se, assim, uma parábola sobre a generosidade e a sobrevivência, mais verdadeira na emoção do que no facto.
Ao revelar a verdade histórica, Jorge Morbey não destrói a lenda: devolve-lhe a sua dignidade. Mostra como um povo que tantas vezes lutou contra o destino soube reinventar-se em palavras, em canções, em memórias que o vento leva, mas não. apaga.

Hoje, quem contempla a baía do Porto Grande pode ainda sentir, sob a superfície calma das águas, o eco distante de 1917. Talvez o submarino já não exista, talvez os destroços tenham desaparecido, mas a história, essa, continua a flutuar. Vive nos contos, nas vozes, no espírito indomável do Mindelo.
Porque há verdades que o tempo confirma e outras que o coração insiste em guardar.

Fontes consultadas:
Jorge Morbey, O ataque de um submarino alemão no Porto Grande de São Vicente durante a I Guerra (1914-1918), Livros do Oriente, 2018.
Testemunhos orais e memórias históricas da ilha de São Vicente.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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