Uma das maiores dificuldades na descrição é a verbalização das sensações. É impossível descrever sensações sem a virtualização do real. O recurso estético-estilístico ideal para isto é a Sinestesia, que consiste numa associação, no mesmo enunciado, de elementos semânticos provenientes de domínios sensoriais ou de esferas de perceção diferentes.
Por: João Delgado da Cruz
Imagina como seria sentir [ler] o gosto de um cheiro ou a textura de um som? Na verdade, a Sinestesia aproxima o sentido mais próximo, a visão, do mais distante. O texto literário é visualizado [lido].
Entendemos o alumbramento quando nas primeiras aulas de Literatura Brasileira deparamos com a Iracema. José de Alencar burila as nossas emoções e percepções e aproxima-nos da sua índia. Sentimo-nos como o Martim, através da melodia verbal que conduz o romance, feita de descrições repletas de sinestesias e cores que ajudam na fusão da história com os elementos da natureza, característica tipicamente romântica: “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.” (Iracema, José de Alencar, p. 12)
Fernando Pessoa, no “Livro do Desassossego”, confessa que “o olfato é uma vista estranha”, evoca paisagens sentimentais por um desenhar súbito do subconsciente.
Quem nunca tentou descrever o aroma da terra molhada pelas primeiras chuvas ou a sensação epidérmica de um fim de tarde de verão, sem os conseguir?
No ensaio Antropologia dos sentidos, David Le Breton escreve que as sociedades ocidentais deixaram de valorizar algumas sensações. Esforçamo-nos por esconder as sensações naturais devido à dificuldade da sua representação verbal.
A propósito, lembro-me de uma aula, há alguns anos. O objetivo era entender a expressividade da Sinestesia. Assim, levei os meus alunos até uma pracinha ao lado da escola. O sumário era “Captação de sensações”. Tinham de transcrever para o caderno todas as sensações. Era uma agradável manhã, o Monte Cara erguia-se imponente à nossa frente. Os alunos ficaram maravilhados. Para quê saber o que é a sinestesia se não conseguimos “sinestesiar” os nossos sonhos?
No regresso à sala de aula, li alguns trechos do romance “O Perfume” de Patrick Süskind, um livro que explora o tema de experiências sensoriais. “Vocês podem verbalizar às vossas sensações. Vocês podem “sinestesiar” os vossos sonhos. Vocês podem ser escritores do vosso futuro e não precisam de papel e caneta.”
Alguém me chamou atenção pelo inusitado da aula, era uma inovação nos planos!
Claro que não repeti mais esta aula na escola, mas ficou gravado este elogio – “inovação”.
Anos depois, fui convidado pela Ana Cordeiro a preparar e monitorizar um curso de escrita criativa no Instituto Camões e esta é uma das sessões mais prazerosa. Seguidamente fizemos “Passeios com histórias” em que se cruzavam os escritos de Aurélio Gonçalves e os seus lugares, foi a minha melhor aula de Literatura.
A literatura respira vida e a vida respira literatura.
Relatei estas experiências ao professor de um Seminário de Semiótica no Brasil, e ele, naquele linguajar nordestino, disse, “Bêleza, cara”.
Não é que a aula de “Captação de sensações” foi na Praça B.Léza, o poeta cabo-verdiano que melhor “sinestesiou” os nossos sonhos?!
Depois de Patrick Süskind falei aos meus alunos de B.Léza e da beleza sensorial dos seus versos e também falei ao professor de Semiótica de Francisco Xavier da Cruz – da sua poesia, da sua atração pelo Brasil, do meio tom, do Bronze, da origem da alcunha. O professor disse de novo “B.Lêza”. Mostrei este poema aos meus alunos e também mostrei ao professor. E vou mostrá-lo às minhas amigas e aos meus amigos:
NHÂ DIXÃ-N
Odjo di nhâ é más doce
Qui uba di Mostêro
Graça di nhâ ê más brando
Qui sombra di Mamosêro
Ai câ nhâ’ spia’ n
Nhâ dixa’ n
Câ nhâ dâ-n
Baria na coraçon
Odjo di nhâ tem quel lumi
Qui’ stâ dentro di vulcan
Nhâ ten moços di bila
Co baria na coraçon
Composição de Jorge Barbosa e B. Lêza
(Os olhos da senhora
São mais doces
Que as uvas de Mosteiro
A sua graciosidade é mais suave
Que a sombra do mamoseiro
Não me fite
Deixe-me
Não me avarie o coração
Os seus olhos têm o lume
Que está dentro do vulcão
Os moços da vila estão todos
Com os corações avariados por sua causa)