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Cabo Verde: O Partido antes do País

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Sonia Almeida

Em Cabo Verde, o debate político tem sido, demasiadas vezes, condicionado pela lógica da pertença. A filiação partidária, que idealmente deveria refletir uma escolha cívica e racional, tornou-se um marcador identitário que molda a forma como se interpreta a realidade. Os psicólogos descrevem este fenómeno como identity-protective cognition, a tendência humana para filtrar a informação de modo a proteger a ligação ao grupo (Kahan, 2017). Nesse contexto, o compromisso político deixa de ser uma questão de ideias para se transformar numa questão de lealdade.

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Quando um dirigente falha, o que não é raro, a reação é justificar, relativizar ou silenciar. Este comportamento revela o que poderíamos chamar de dissonância cognitiva moral, ou seja, a tensão entre o reconhecimento do erro e a necessidade de o aceitar para evitar o desconforto da contradição. O militante, confrontado com a falha, resolve essa dissonância por meio da racionalização. E, pouco a pouco, o erro deixa de ser excepção para se tornar norma.

O eco das lealdades

Esta dinâmica é particularmente visível nas redes sociais. Em publicações oficiais ou pessoais de altos dignitários do país, observam-se longas cadeias de comentários que aplaudem, mas raramente questionam. São elogios automáticos, fórmulas de aprovação muitas vezes inócuas, vénias verbais que funcionam como um reflexo condicionado: o aplauso torna-se mais importante do que o conteúdo. Torna-se um exercício em que, por um lado, acaricia o ego de um; por outro, confirma a lealdade do outro. É o espaço onde cada um afaga o seu próprio narcisismo, certo de ali reencontrar o reflexo desejado – esquecendo que, quando Narciso se inclinou sobre o lago para se contemplar, não encontrou o amor, mas a morte.

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O que é omitido, problemático ou simplesmente inócuo, raramente é referido. Assim, o espaço público digital, que poderia ser um lugar de debate esclarecido, converte-se num eco de lealdades, onde a discordância é interpretada como afronta.

Por outro lado, os algoritmos reforçam este padrão: ao exibirem apenas o que confirma as crenças do utilizador, constroem um espaço cognitivo fechado, onde a dúvida é percecionada como fraqueza. O militante cabo-verdiano, tal como o activista digital noutros contextos, vive dentro de uma bolha que lhe devolve apenas o eco das suas próprias certezas. A discordância, em vez de ser entendida como parte natural da vida democrática, é reinterpretada como ameaça identitária.

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Da lealdade ao fanatismo

No extremo oposto, encontramos também os que, em nome da liberdade de expressão, respondem à rigidez com agressividade. O insulto substitui o argumento; a emoção suplanta o raciocínio. É o domínio do argumentum ad hominem, isto é, atacar quem fala, e não o que é dito.Trata-se de um mecanismo compreensível, mas empobrecedor: o debate deixa de ser confronto de ideias para se tornar palco de emoções não elaboradas.

Erich Fromm, em Escape from Freedom (1941), observou que, perante a incerteza da liberdade, muitos procuram refúgio na submissão ou na destrutividade. A agressão verbal é, neste contexto, uma tentativa de reafirmar o “eu” pela desvalorização do outro, o revés do conformismo partidário. Ambos revelam a mesma dificuldade: a de lidar com a complexidade e a solidão de pensar por conta própria.

A língua como território ideológico

Nada revela melhor esta prisão cognitiva do que o ‘debate’ linguístico em Cabo Verde. A língua, que deveria ser instrumento de comunicação e herança plural, é convertida num campo simbólico de poder. Em vez de se discutir serenamente o lugar do crioulo e do português, e a sua convivência possível, impõe-se uma ortodoxia em que o crioulo de Santiago procura, sub-repticiamente, afirmar-se como primus inter pares: quem ousa questionar ou divergir é de imediato acusado de elitismo, bairrismo ou traição identitária. A
ideologia ocupa o lugar do argumento; o debate degrada-se em dogma. A língua deixa de ser o que dizemos para se tornar no que nos é permitido dizer.

A defesa – ainda que não confessada – de uma única variante “oficial”, imposta sem verdadeiro diálogo, e apresentada como acto de emancipação, contém, paradoxalmente, uma pulsão autoritária. O que se pretende fixar não é apenas uma gramática, mas uma verdade e, por extensão, um modo de pensar e de sentir.

Essa militância encontrou, expressão escrita num alfabeto – o Alupek -concebido para se ajustar sobretudo à variante de Santiago e apresentado como instrumento de “afirmação africana”. Contudo, mais do que uma afirmação de identidade, o que se observa é uma tentativa de a redefinir: identificar Cabo Verde exclusivamente com África, esquecendo que o país nasceu do cruzamento de culturas e da tensão criadora entre elas.

Esta imposição é, aliás, respaldada por argumentos apresentados como científicos – ou pseudo-científicos -, brandidos por zeladores do consenso dominante, sempre prontos a vestir o manto da neutralidade académica para justificar o que é, em essência, uma escolha ideológica. É aqui que se insinua o perigo de uma ditadura científica: quando o saber deixa de iluminar e passa a legitimar, quando a ciência se converte em dogma e o debate em heresia.

Nessa ânsia de pureza simbólica, perde-se precisamente o que torna Cabo Verde singular – a capacidade de ser ponte, não fronteira.

Como em 1984, de Orwell, o controlo da linguagem torna-se o controlo do pensamento: ao delimitar o que se pode dizer, restringe-se o que se pode imaginar. O que deveria ser um instrumento de libertação – a língua – transforma-se num mecanismo de vigilância simbólica.

O perigo de não pensar

Hannah Arendt lembrava que “pensar é perigoso, mas não pensar é mais perigoso ainda” (The Life of the Mind, 1978). Quando o pensamento se deixa capturar pela lealdade grupal ou se dissolve na hostilidade, o espaço público empobrece. É assim que Karl Popper advertia que a sociedade aberta só sobrevive se os cidadãos estiverem dispostos a questionar as suas próprias certezas (The Open Society and Its Enemies, 1945).

Hoje, talvez, o desafio de Cabo Verde, seja precisamente este: reencontrar o equilíbrio entre pertença e pensamento crítico, entre convicção e escuta. As ideologias, outrora instrumentos de análise, tornaram-se prisões mentais. Oferecem certezas pré-fabricadas que, dispensando o esforço de pensar, impedem a transformação real. Mas uma nação que abdica da dúvida abdica também do futuro. Pensar com decência e com coragem continua a ser o gesto mais patriótico que uma sociedade pode cultivar. Porque o verdadeiro amor ao país não se mede pela fidelidade ao partido, mas pela fidelidade à verdade.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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