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Arbitrariedade e precariedade no trabalho, o silêncio que adoece 

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O trabalho por conta de outrem, no sector público ou privado, é visto como a fonte de rendimento tradicional, mas, além disso, é também a esfera onde é possível desenvolvermos enquanto pessoas, profissional e socialmente, na medida que possibilita um conjunto de aprendizados, interações e conhecimentos que elevam a pessoa humana na sua vida em sociedade. 

Por: Nelson Faria

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Em Cabo Verde, historicamente, os grandes empregadores estão nas grandes empresas nacionais e algumas atividades consolidadas na nossa economia, todavia, é no setor público, o maior empregador, que se cria uma visão do pilar de estabilidade laboral. Visão essa que tende a desaparecer percepcionada pelas denúncias públicas, entre amigos, familiares, redes sociais, que aparenta uma transformação desses sectores num palco de contradições. 

Por um lado, a estabilidade histórica, por outro a precariedade e arbitrariedades várias. Por trás da fachada de ilusória segurança do emprego, tem-se multiplicado relatos de arbitrariedade, precariedade e violações sistemáticas de direitos dos trabalhadores. Denúncias anónimas, públicas e privadas, cada vez mais frequentes, revelam um cenário onde o medo e a dependência financeira silenciam vozes, enquanto corpos e mentes adoecem em nome da sobrevivência.

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A gestão pública cabo-verdiana frequentemente opera sob uma lógica de poder verticalizada, onde, pelos relatos que me têm chegado de pessoas que trabalham em várias instituições, decisões são tomadas, por vezes, sem transparência ou diálogo. Promoções aleatórias, perseguições a críticos e cobranças por metas inatingíveis são práticas comuns. Colaboradores são reduzidos a meros executores, sem direito a questionar hierarquias, um claro desrespeito à legislação laboral que prevê participação e respeito, além de outros princípios constitucionais que definem um país democrático, livre e um Estado de direito, sobretudo, quando a meritocracia é substituída por favores políticos, a desmotivação e a desconfiança tornam-se crónicas.

Apesar da imagem de empregos estáveis, é facto assumido pela governação, muitos servidores públicos enfrentam contratos temporários, precários, repetidamente renovados, sem acesso aos benefícios da proteção social obrigatória porque, simplesmente as leis do Estado que lhes emprega não permitem a sua regularização. Isto, por vezes, gera uma falsa estabilidade que cria uma classe de trabalhadores “permanentemente provisórios”, reféns da boa vontade de gestores, nomeados políticos, ou pelos próprios quando são os decisores. O resultado? Profissionais que calam assédios e más condições, temendo não ter o contrato renovado. Mesmo com a aparente tentativa de regularização que aconteceu nos últimos anos, muitas vezes pré-eleitoral, o problema persiste e carece de estudo.

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 A pressão por resultados em ambientes tóxicos, somado a humilhação de pedir “favores”, ou “expedientes” para direitos básicos, como férias ou salários em dia, leva a que muitos adoeçam silenciosamente. Sintomas de ansiedade, depressão e esgotamento são tratados como tabus, enquanto a cultura do “agradeça por ter emprego” naturaliza o sofrimento. Para piorar, a falta de apoio psicológico institucional leva a que seja o trabalhador a lidar com a responsabilidade com o mal-estar, muitas vezes, sem recursos financeiros para fazê-lo, ou mesmo sem conhecimento necessário para entender o mal por que passa.

Em uma economia com as características do desemprego que temos, especialmente entre jovens e mulheres, perder o emprego pode significar a exclusão social. Muitos suportam humilhações para garantir o sustento de famílias inteiras, numa sociedade onde o desemprego ainda carrega estigma. Além da dependência financeira, há laços emocionais, os anos de serviço que criam uma identidade profissional difícil de romper, mesmo quando em ambiente laboral degradante. O medo de represálias ou de ser marcado como “problemático” perpetua o ciclo de silêncio.

Cabo Verde possui uma boa legislação do trabalho, com proteções teóricas contra assédio e discriminação. Entretanto, a prática não demonstra o seu integral cumprimento, ademais se considerarmos que os órgãos de inspeção carecem de recursos e autonomia, e processos judiciais arrastam-se por anos. A impunidade para gestores que desrespeitam normas laborais alimenta uma cultura de ilegalidade que tende a ser normalizada.

As situações de trabalho, precárias e com vieses de arbitrariedade, leva a que este cenário evidencia não seja apenas incumprimento das questões legais ligadas ao trabalho, mas, sim, a nossa decadência ética e humana. Combater essa realidade com efetividade exigiria medidas concretas no fortalecimento de órgãos inspetivos e fiscalizadores, também sobre o sector público, agilização da

Justiça, criação de canais seguros para denúncias e campanhas de consciencialização sobre direitos. Além disso, seria importante integrar apoio psicológico aos trabalhadores, reconhecendo que saúde mental é parte indissociável da saúde humana e da dignidade laboral.

Enquanto o Estado não for exemplo, não priorizar quem sustenta seus serviços, os trabalhadores, as pessoas, Cabo Verde seguirá contradizendo seu próprio lema sobre trabalho digno e desenvolvimento. Afinal, uma nação só avança quando seus trabalhadores não precisam escolher entre o pão e a própria dignidade.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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