Nelson Faria
A tragédia que assolou São Vicente, com o seu rasto de destruição, sofrimento e perda de vidas humanas, exige mais do que luto solidário e promessas de reconstrução que na prática não se veem como seria desejado. Exige, de forma imperativa e inadiável, que se cobrem responsabilidades. Afastar este imperativo, seja por conivência, comodismo ou falsa noção de unidade ou unanimismo, é uma falha moral, é um atraso civilizacional e institucional grave.
Num Estado de Direito Democrático, a prestação de contas é o pilar que sustenta a confiança dos cidadãos nas suas instituições. Somente nas ditaduras e regimes autoritários é que as catástrofes, muitas vezes amplificadas pela negligência e incompetência do poder, ficam impunes. Desastres naturais acontecem por toda a parte, é um facto, mas, umas estão mais bem preparadas que outras para as suportar e responder aos desafios que trazem, dependente do nível civilizacional, político e de liderança dos decisores, pois, “nem tudo se resume a “ribeiras” e há quem tenha pressa em viver o seu tempo.
Calar-se perante a falha, seja ela por ação ou omissão, é compactuar com a erosão dos alicerces da nossa democracia. Nisto, penso que é crucial recordar outros momentos dolorosos da história nacional, como a tragédia do Navio Vicente, onde o coro de pedidos de responsabilização política foi unânime e justo. Por isso, é legítimo questionar: se a força partidária no poder fosse outra, os que agora acusam de “oportunismo” não seriam os primeiros a exigir responsabilidades, transparência e justiça? Pedir responsabilidades, neste contexto, não é oportunismo. É um dever.
É um dever de consciência. A gestão do território e a proteção das populações não são abstrações. Resultam de decisões concretas, de opções políticas, de prioridades, de escolhas e, acima de tudo, do cumprimento ou incumprimento da lei. Quem conhece a realidade de São Vicente sabe que muitos dos problemas que agravaram esta tragédia são de longa data e amplamente denunciados.
É um dever de memória. Memória para com aqueles que não resistiram à fúria das águas. Memória para com as famílias que viram as suas frágeis habitações, muitas vezes em zonas de risco conhecido, serem entupidas pela lama ou varridas do mapa. Memória para com os empresários e microempresários que perderam os seus sonhos e o seu sustento, ficando com o futuro condicionado. A sua dor não pode ser em vão. Não controlamos a natureza, mas controlamos, ou devemos controlar, as decisões que amplificam o seu impacto.
Perante a magnitude do acontecido, é essencial identificar onde falharam os mecanismos de proteção. Na minha perspetiva, as falhas do Estado, do Governo e da Autarquia na gestão desta crise (e na sua prevenção) são evidentes e múltiplas:
Ausência de planeamento e incumprimento da legislação urbanística e de ordenamento do território, já existente e concebida precisamente para prevenir estes desastres.
Falta de zelo na fiscalização, permitindo que construções em leitos de ribeira e encostas se multiplicassem, muitas vezes de forma ilegal.
Incentivo a construções em zonas de risco, através da tolerância e da falta de ação, criando um ambiente de impunidade que alimentou a ocupação predatória do território.
Falta de supervisão do Governo Central sobre os incumprimentos crónicos do município, falhando no seu papel de garante último do cumprimento da lei.
Inércia das instituições públicas de alerta, como o INMG, que não emitiu avisos com a clareza, antecipação e sinalização devidas para permitir a precaução das pessoas.
Proteção Civil municipal sem meios, equipamentos e estrutura adequados, revelando-se desarticulada e completamente incapaz de responder a uma crise desta dimensão.
Gestão da crise opaca e desarticulada, com a exclusão de atores eleitos e da sociedade civil, o que tem gerado confusão e descoordenação numa hora que exigia unidade de ação.
Ausência de informação clara e transparente para as populações durante e após a catástrofe, alimentando o medo e a desorientação.
Inércia das instituições, Tribunais inclusive, sobre a gestão inadequada do município, mostrando uma falha sistémica na prestação de contas.
Negligência grave e desresponsabilização por parte do Pelouro da Proteção Civil Municipal de São Vicente (PCMSV).
A passagem da responsabilidade do pelouro crucial da Proteção Civil do Presidente da Câmara para outro vereador, e a resistência em entregar a pasta do Urbanismo a um técnico especializado, preferindo a gestão política à competência técnica.
A inação e lentidão na comunicação e na ação de recuperação, sintetizadas na frase reveladora do Presidente da Câmara sobre agir “sem pressa”, quando toda uma população pedia e precisa de celeridade.
Perante este rol de falhas, a responsabilização não pode ser um pormenor. Tem de ser uma evidência. Se a Procuradoria-Geral da República, os Tribunais ou outras instituições de controlo não cumprirem o seu papel com a necessária celeridade e rigor, cabe à sociedade civil, à comunicação social e às forças políticas democráticas assumirem este posicionamento. Não por revanchismo, nem oportunismo, mas como um dever de memória futura.
É preciso dar nome e rosto às decisões, opções e omissões que tornaram São Vicente mais vulnerável. Sem isso, a tragédia de hoje será inevitavelmente repetida amanhã. Cobrar responsabilidades é honrar os que já cá não estão, é respeitar os que ficaram e é, acima de tudo, afirmar com clareza que a democracia cabo-verdiana não é um campo de irresponsabilidade.