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“A língua portuguesa em Cabo Verde: De herança a ferramenta de futuro”

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Christian Lopes

Cabo Verde celebrou, há praticamente um mês, meio século de independência. Meio século de soberania, construção nacional e afirmação internacional. Apesar da independência, há heranças do passado colonial que não desapareceram e, em certos casos, foram apropriadas, moldadas e valorizadas. A mais importante delas, talvez, seja a língua portuguesa.

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Poucos legados do período colonial resistiram com tanta força e com tamanha transformação como o idioma. O português é, ainda hoje, a língua oficial do país, a língua da educação, da diplomacia, das instituições e dos media. Mas, em Cabo Verde, deixou de ser apenas um vestígio do passado para se tornar um instrumento ativo de futuro.

Apropriação e reapropriação

Ao contrário do que aconteceu noutros contextos pós-coloniais, Cabo Verde não rejeitou o português como idioma do colonizador. Pelo contrário, apropriou-se dele, enriqueceu-o com musicalidade crioula, adaptou-o à sua oralidade própria e fê-lo seu. A língua portuguesa em Cabo Verde vai além da norma gramatical: é ritmo, é cultura, é ponte para o mundo.

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Contudo, é impossível ignorar que a língua portuguesa atravessa, em Cabo Verde, um dos momentos mais preocupantes da sua história recente. A perceção desta língua como “instrumento do passado”, “elitista” ou “distante da realidade popular” tem crescido, especialmente entre setores onde falta uma valorização consciente do seu papel estratégico e cultural. Pouco se reconhece o seu potencial económico, educativo e cultural, e esse desconhecimento representa um risco que o país não pode negligenciar.

Uma janela internacional

A permanência do português abriu portas importantes. Cabo Verde é hoje membro ativo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), conta com universidades integradas em redes de cooperação internacional lusófona, artistas reconhecidos internacionalmente e uma posição diplomática reforçada no espaço de língua portuguesa.

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O português tornou-se, assim, uma ponte que liga Cabo Verde ao mundo lusófono e além. Num contexto internacional onde os grandes blocos linguísticos têm influência crescente, como acontece com o inglês, o espanhol ou o francês, manter o português é também um ato de escolha estratégica e inteligência política, sobretudo para um arquipélago cuja sobrevivência e desenvolvimento dependem da abertura ao mundo.

A tensão latente com o crioulo

Entretanto, esta história não é isenta de dilemas. O português é, por vezes, sentido como língua de elite, de acesso desigual, enquanto o crioulo é a verdadeira língua do povo, do afeto, da intimidade. A ausência de oficialização plena do crioulo ainda é debatida com intensidade, e com razão. O crioulo é a matriz afetiva e cultural do povo cabo-verdiano, e qualquer processo de valorização linguística deve passar, também, pela sua promoção estruturada.

O desafio de Cabo Verde, para o futuro, será garantir que o português não se torne um instrumento de exclusão. Deve ser mantido como ferramenta de emancipação e integração, sobretudo nas esferas da educação, cultura e cidadania. Ao mesmo tempo, é essencial valorizar, ensinar e normatizar o crioulo, sem complexos nem rivalidades artificiais entre os dois idiomas. A convivência linguística deve ser harmoniosa, e não conflituosa.

Conclusão

Cinquenta anos depois da independência, a língua portuguesa deixou de ser herança colonial para se tornar património nacional. Usá-la é hoje um gesto de soberania cultural, e não de submissão histórica.

Na literatura, na música, no ensino, nas instituições, nos palcos internacionais Cabo Verde fala português com alma crioula. E é exatamente nessa fusão que reside a sua força singular. 

***Ver entrevista, disponível no Youtube, no âmbito das comemorações dos 50 anos da independência de Cabo Verde, conduzida pelo Doutor Jairzinho Pereira a três figuras políticas nacionais: Comandante Pedro Pires, Dr. Carlos Veiga e Dr. Jorge Carlos Fonseca, abordando essencialmente essa questão da língua.”

Votos de uma excelente e santa semana.

Respeitosamente.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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