Aumento da verba do Carnaval pelo Governo aquém da expectativa dos grupos de S. Vicente: “Anúncio avulso e sem ponderação”
Os grupos oficiais do Carnaval de São Vicente consideram extemporâneo e sem qualquer ponderação o anúncio feito pelo Primeiro-ministro de aumentar em 50% a verba da festa do Rei Momo, de 10 para 15 mil contos. Alegam que, ao contrário da cerimónia de assinatura do protocolo com o AME e o Kriol Jazz Festival, em que houve preocupação em se detalhar os contornos do acordo, em relação ao Carnaval, o Primeiro-ministro fez uma declaração avulsa, sem clarificação e na ausência de pelo menos o Presidente da Ligoc.
É o caso do presidente do Estrela do Mar, Júlio do Rosário, que chama a atenção de que o aumento é a nível nacional, pelo que não significa que vai se traduzir em mais verba para o Carnaval de São Vicente. “Acredito que, se houver algum acréscimo, será residual porque sabemos que as demais ilhas – Santiago, Sal e São Nicolau -, têm vindo a reivindicar mais financiamento para o seu carnaval”, diz o empresário. Neste sentido, acha que é possível que os atuais cinco mil contos atribuídos a São Vicente se mantenham, sendo certo que este aumento sequer se aproxima dos orçamentos anuais dos grupos mindelenses. “Neste momento, para realizarmos um carnaval decente precisamos no mínimo de valores superiores aos 10 mil contos.”
Exatamente por isso, este dirigente carnavalesco é taxativo em afirmar que o anunciado aumento feito por Ulisses Correia e Silva continua insuficiente para as necessidades e para a dimensão que o Carnaval de São Vicente atingiu, sobretudo nos últimos tempos. “Vivi no ano passado dois meses intensos e vi o impacto que esta festa tem na economia da ilha e do país. Por isso, entendo que este valor é irrelevante, sobretudo se formos comparar com os montantes atribuídos ao AME e ao KJF (contemplados com um total de 20 mil contos/ano), que são mais restritos e de impacto limitado”, compara Júlio do Rosário. Na sua ótica, o protocolo celebrado pelo Governo com estes dois eventos veio reforçar a sua convicção de que os grupos carnavalescos precisam trabalhar de forma legal, ter a sua contabilidade organizada e realizar eleições livres para, quando chegarem junto das autoridades, poderem exigir e demonstrar o impacto que o Carnaval tem no PIB de Cabo Verde.
Como sugestão, Júlio do Rosário defende que as taxas anuais arrecadadas pelo Fundo de Turismo, referentes aos meses de Janeiro e Fevereiro, deveriam ser retidas e canalizadas exclusivamente para financiar o Carnaval de São Vicente. “Volto a repetir que este aumento é insignificante. Antes o Governo distribuía 10 mil contos, sendo cinco mil para S. Vicente e cinco para as restantes ilhas. Se os 15 mil contos foram divididos da mesma forma, significa que o Carnaval de São Vicente vai receber mais 250 mil escudos. Com a possibilidade de o Vindos do Oriente voltar às ruas em 2025, os valores quase que se vão manter inalterados”, assegura, realçando que 250 mil escudos é um montante simbólico pago por um parceiro ou patrocinador, não pela tutela da Cultura em Cabo Verde.
Anúncio ambíguo
Já o presidente da Escola de Samba Tropical alega que o anúncio, por si só, foi dado com alguma ambiguidade porque não especifica se o montante vai ser distribuído equitativamente pelos municípios. Também, do seu ponto de vista, não levou em conta a evolução do Carnaval na ilha de São Vicente. “Neste momento, todos os grupos oficiais prestam contas à Câmara de São Vicente, que é a maior patrocinadora do Carnaval. Para os valores serem liberados, em tranches, temos de justificar os montantes recebidos. E a edilidade de plena consciência de que todos os grupos acumulam dívidas para podermos apresentar um Carnaval a altura das expectativas dos cabo-verdianos.”
Por conta disso, David Leite não tem dúvidas de que este aumento fica muito longe das reais necessidades do Carnaval de São Vicente, que é indiscutivelmente o maior produto cultural e turístico de Cabo Verde. “Os cinco mil contos de aumento não vão fazer qualquer diferença no nosso Carnaval. A ideia que ficamos é que o PM reagiu de imediato a alguma questão dos jornalistas durante a assinatura do protocolo com o AME e KJF, sem uma concertação prévia com a Ligoc. Caso contrário, o presidente da Liga estaria presente na cerimónia”, sublinha, pontuando que a intenção pode ser boa, mas ficou aquém das expectativas, pela importância que o Carnaval tem para o turismo e a cultura. “Penso que exige algo mais sério e organizado; não pode ficar por um anúncio avulso.”
Daia lembra que foi feito um estudo, que nunca foi oficializado, e que apontava para a necessidade de valores mais robustos, na ordem dos 50 mil contos, para o Carnaval de São Vicente. O próprio Samba Tropical, diz, chegou a fazer um levantamento que apontava o mesmo cenário. “Todos os anos os grupos acumulam dívidas porque queremos fazer sempre um melhor carnaval. Esta festa está impregnada na cultura de São Vicente. Os 50 mil contos previstos poderiam garantir um salto de qualidade sem precedentes.”
Do lado do Cruzeiros do Norte, o presidente mostra-se também indiferente com o aumento de cinco mil contos sobre o valor atual. De acordo com Jailson Juff, pela dimensão que o Carnaval já atingiu, e por tudo que traz a Cabo Verde em termos económicos e financeiros, merecia muito mais. “Em termos percentuais, o valor é irrisório porque vai ser distribuído para todos os grupos. Isto, numa altura em que os orçamentos individuais, em alguns casos, ultrapassam o valor global do incentivo do Governo. Em termos comparativos, o AME e o KJF mobilizam menos pessoas e trazem poucos ganhos para o país.”
Mais atenção ao Carnaval
Para Jaison Juff, o Carnaval de S.Vicente precisa ser analisado com mais atenção, tendo em conta o número de pessoas que envolve na sua preparação, desde costureiras, ferreiros, músicos, figurantes, de entre outros, tendo ultrapassado, inclusive, as festas de fim-de-ano. “Hoje os nossos emigrantes marcam as suas férias para o Carnaval. Contribui para o crescimento da nossa economia. Por isso, entendo que o montante atribuído é manifestamente insuficiente.”
Na ausência do Presidente da Liga, Adilson Jesus optou falar a título pessoal e confirmou que não houve qualquer concertação com o Governo sobre o anúncio do aumento da verba do Carnaval. Este admitiu, no entanto, que havia alguma expectativa. “Se todos os grupos oficiais de São Vicente decidirem desfilar, incluindo o Vindos do Oriente – que tudo indica vai voltar ao asfalto -, o montante atribuído a cada um vai reduzir. Em 2024, cada grémio recebeu mil contos de incentivo do Governo. Com o regresso do VO baixa para 800 contos”, faz as contas. Na sua opinião, trata-se de um montante irrisório, tendo em conta a forma como o Carnaval movimenta a economia de São Vicente. “Não tenho valores concretos em mãos mas, por alto, penso que serão necessários em torno de 60 mil contos para termos um bom desfile em São Vicente.”
Este sublinha que todo o financiamento do Carnaval é canalizado para os grupos oficiais, mesmo assim ainda insuficiente para cobrir a totalidade das necessidades. Acrescenta que há ainda despesas da produção do Carnaval, que são assumidas pela CMSV e pela Liga, que é uma associação sem fins lucrativos. Esta realiza a angariação dos valores que aporta ao Carnaval através de parceiros, mas ainda não consegue criar a sustentabilidade do seu funcionamento. Tudo é feito através do trabalho voluntário dos membros.
“Se formos comparar os cinco mil contos de reforço ao Carnaval com os 20 mil atribuídos ao AME a ao KJF, eventos que têm como palco o município da Praia, e que são fechados, percebe-se a discrepância. O Carnaval de S. Vicente tem assentos, mas ainda dá a uma boa parte do público a oportunidade de assistir aos espetáculos fora das bancadas, mantendo a abertura a todos. E a rentabilidade para a economia é muito superior. O Carnaval dinamiza a economia desta ilha”, reforça Adilson Jesus, acentuando que são centenas de pessoas cujos rendimentos dependem exclusivamente desta festa, caso das costureiras.
Foi na semana passada, mais precisamente na quarta-feira, 10 de julho, que o Primeiro-ministro anunciou o aumento de 50% do orçamento do Carnaval de 2025, que deve passar dos 10 para os 15 mil contos, valor que vai ser incluído no próximo Orçamento do Estado. O governante fez este anúncio durante a assinatura do protocolo de incentivo ao Atlantic Music Expo (AME) e Kriol Jazz Festival – que passam a usufruir de 20 mil contos de ajuda do Estado por ano -, justificando que o Carnaval é “um outro produto cultural importante” do país.