Sanvicentinos respondem ao chamamento e quebram silêncio em protesto “Di povo pa povo” na Praça Dom Luís

Um grupo significativo de pessoas, sobretudo jovens, concentrou-se esta tarde na Praça Dom Luís, atendendo ao chamado do movimento cívico “Di povo pa povo”, empunhando cartazes com dizeres como ‘Povo unido pa mudança’, ‘Juntos por um Cabo Verde mais justo’, ‘Basta’, ‘Somos o grito de quem nunca é ouvido’, de entre outros. No mesmo horário, em diferentes pontos do arquipélago aconteciam protestos similares sob o lema “Gossi ké hora’ (Agora é a hora), nesta que é, segundo a organização, a primeira de muitas outras ações.
À imprensa, o coordenador do movimento em São Vicente explicou que o protesto não é virado para a ilha, mas sim para Cabo Verde, tendo em conta que todo o país enfrenta os mesmos problemas. “Este movimento visa incentivar uma cidadania mais ativa porque, podendo parecer que não, os governos e as câmaras municipais trabalham para o povo. Por isso, têm de ouvir o povo. E quando fizeram promessas, têm de as cumprir, ou pelo menos dar alguma satisfação ao povo”, explicou Bento Lima.
Este explicou que ‘Di povo pa povo’ aconteceu, em simultâneo, em vários municípios de Cabo Verde e também na diáspora, com maior ou menor adesão. No caso de S. Vicente o protesto foi preparado em uma semana. “Somos um movimento apartidário. Temos aqui pessoas de múltiplas cores políticas. No meu caso, não tenho nenhuma cor partidária, mas senti necessidade de estar aqui, sobretudo depois da tempestade Erin. Estive no terreno e vi muita coisa, que mexeu comigo e provocou uma revolta dentro de mim. Foi anunciado mundos e fundos que, ou não estão a ser aplicados, ou ninguém se preocupa em informar os sanvicentinos o que tem vindo a ser feito”, desabafa.

Bento Lima mostra-se particularmente descontente porque, afirma, ouviu-se falar de muito dinheiro, mas ninguém conhece os planos para a sua aplicação. Entretanto, o que se vê são reconstruções nos moldes anteriores. E a nível nacional, diz, os problemas são maiores. “Estamos num país cujos principais pilares não se sustentam. É o caso do sector dos transportes, cujas insuficiências são conhecidas; falta de segurança, há problemas a nível da justiça, educação, saúde, de entre outros”, elencou, retomando a declaração do ME que afirmou que os manuais só vão chegar aos alunos no final do primeiro trimestre.
Acumular de problemas
Para este jovem ativista, este acumular de problemas se transformou numa vergonha e leva muitas pessoas a questionar o que realmente funciona bem em Cabo Verde neste momento. E é o próprio a responder. “Poucas coisas estão a funcionar no país. Em S. Vicente, gostaríamos de ver mais rigor a nível do urbanismo. Temos um problema grave, que ficou mais evidente após a tempestade. Todos vimos o que aconteceu, mas não há um plano de reconstrução. O que estamos a ver é a reparação dos mercados da Praça Estrela exatamente como eram antes e não se vislumbra trabalhos de desassoreamento. Significa que, daqui a dois anos, se voltar a chover, a ilha vai registar uma nova catástrofe. Isso não é pensar S. Vicente a longo prazo. Não podemos nos conformar com o curto prazo.”
Enquanto as autoridades não cumprem, Bento Lima lembra que a população está a fazer a sua parte, ou seja, paga os seus impostos e espera uma resposta à altura das suas expectativas. Exatamente por isso, afirma, o protesto de hoje é apenas um primeiro passo. “Se tivermos aqui 200 pessoas é suficiente, sobretudo porque fizemos publicidade apenas nas redes sociais. Esta é uma primeira ação deste movimento que surgiu com o propósito de desenvolver a cultura de exigir mais. E esperamos que surjam mais movimentos para fazer algo similar e assim a cidadania funcionar”, perspectiva.

Confrontada, a professora universitária Márcia Brito justificou a sua presença no protesto dizendo que quer que os filhos tenham um ambiente saudável para ver. “Não temos isso em São Vicente e nem em Cabo Verde como um todo. O que vemos é um aumento do consumo de drogas, pessoas com doenças mentais abandonadas nas ruas, serviços públicos ineficientes, desemprego, sobretudo desemprego jovem. Enfim, estamos a atravessar um momento de desgoverno.”
Divórcio dos governantes com a realidade
A estas motivações, o investigador Guilherme Mascarenhas junta um alegado divórcio dos governantes, chefias e autoridades de uma forma em geral da realidade do arquipélago. “Temos muitas necessidades no país e, pessoalmente, acredito que temos recursos tanto financeiros como técnicos para resolver a maior parte desses problemas. Mas o que aparenta é que as prioridades do país não são as mesmas dos nossos governantes. Vemos, por exemplo, o governo a asfaltar a estrada Mindelo-Baía das Gatas, que custou 400 mil contos. No entanto, no Isecmar, por exemplo, há mais de dois anos que estamos a pedir mil contos para montar um laboratório para servir vários cursos de engenharia.”
Argumenta este docente que é no laboratório que os alunos têm o seu primeiro contacto, por exemplo, com os circuitos, numa sociedade em que cada vez mais se está a electrificar. “Não percebo o Governo investir 150 mil contos em um monumento ou 10 mil contos em uma regata, quando não há dinheiro para coisas básicas. A meu ver, os nossos governantes estão a viver em outro país. Isto acontece porque não escutam os seus colaboradores e nem a população, e acaba por criar revolta nas pessoas,” acusa, citando ainda o anúncio recente da asfaltagem da estrada Mindelo-Calhau.“O investimento feito nos poucos metros já asfaltados, dava para montar um grande laboratório no Isecmar.”
Priorizar prioridades
Há ainda muitas pessoas em Cabo Verde a viver sem energia elétrica, água ou esgoto nas suas residências, afirma Guilherme Mascarenhas enquanto o Governo gasta em projectos de utilidade duvidosa. “É preciso priorizar o que é realmente prioritário,” sentencia.

O movimento “Di povo pa povo’ surgiu nas redes sociais com o propósito de “unir forças para um Cabo Verde mais justo”. Surgiu igualmente nos bares, nas conversas, reclamações e reivindicações, e chegou às ruas, vestido de branco. Não está filiado a nenhuma força política e não dispõe de fundos próprios. A par de S. Vicente, realizou protestos na Praia (Quebra Canela), em Santo Antão (Largo Sete Sóis e Sete Luas na Ribeira Grande) e no Sal, nas ruas pedonais Ildo Lobo (S.Maria) e Toy Pedro (Espargos). Tinha agendado também acções em comunidades cabo-verdianas em Portugal, França e Luxemburgo.