O cardiologista cabo-verdiano José Duarte considera que a situação da pandemia da COVID-19 em Cabo Verde é preocupante e deve constituir assunto de “reflexão”. No que tange a sua especialidade, admite, nesta entrevista ao Mindelinsite, a possibilidade de cooperar com o seu país, mesmo de longe, relativamente à implantação de pacemakers permanentes e à realização de cateterismos cardíacos, duas áreas que concentram a maior parte das evacuações para Portugal.
Por João A. do Rosário
O médico-cardiologista José Duarte chama atenção para a necessidade de uma reflexão sobre a pandemia da COVID-19 em Cabo Verde, que afirma ser “realmente preocupante”. “Em relação à pandemia COVID-19 em Cabo Verde e à sua evolução, tenho acompanhado, com muita atenção a situação. É realmente preocupante. Cabo Verde, segundo dados do Ministério da Saúde, contabilizava, até 25 de novembro, um total de 10.570 casos positivos acumulados, e 105 óbitos por COVID, o que demanda uma reflexão”, diz.
Num país onde os recursos humanos e técnicos não abundam, no seu entender, é preciso, mais do que nunca, medidas concertadas visando o rápido diagnóstico das pessoas infectadas e o seu isolamento, bem como o reforço das normas profiláticas, conforme recomendação da Direção Nacional da Saúde. O cardiologista realçou, entretanto, o grande trabalho e os resultados que os técnicos de saúde e demais estruturas nacionais têm conseguido, na árdua tarefa do controlo desta terrível doença.
Instado a falar sobre a COVID-19 associada as doenças cardiovasculares, o entrevistado afirma que o risco de descompensação da doença de base não é desprezível. Indicou ainda que neste grupo populacional, em que o equilíbrio é instável, a probabilidade de desenvolverem complicações graves ao contraírem a COVID 19, é elevada. “As pessoas com patologia cardíaca, têm um risco acrescido, quer para a infeção com o SARS-CoV2, quer para o desenvolvimento de complicações, quando infectadas. E sabemos, desde há vários anos, que as infeções respiratórias adquiridas na comunidade, são um dos grandes fatores incriminados na agudização e na descompensação da doença de base”, realçou José Duarte.
Para o cardiologista, são reais o agravamento da doença cardiovascular e sua a progressão para a insuficiência cardíaca e respiratória agudas, com o recurso à ventilação mecânica e a outras medidas invasivas. Essas complicações contribuem para a elevada mortalidade nestes doentes. “E mesmo naqueles que sobrevivem, as sequelas resultantes da própria doença, do internamento prolongado e da ventilação mecânica são muito marcantes, com reflexo na sua qualidade de vida futura”, sublinha.
José Duarte alerta ainda para a necessidade de se manter o tratamento para a hipertensão arterial e indicou que, em momento algum, os doentes hipertensos com COVID-19 devem suspender essa terapêutica, excepto se aparecerem contra-indicações clínicas para o seu uso. O cardiologista desmistifica assim a polémica gerada recentemente a este respeito no início da pandemia em que foi aventada a hipótese de alguns medicamentos usados no tratamento da hipertensão arterial poderem facilitar a infeção pelo vírus SARS-CoV2 e, nas pessoas infectadas, agravar a doença. “É importante reforçar a ideia que é necessária a vigilância continuada, bem como não esquecer que a interrupção da terapêutica, de forma intermitente ou continuada, pode levar a um agravamento da situação clínica, com consequências imprevisíveis” explica José Duarte.
Por causa de sintomas tais como a falta de ar, o cansaço, entre outros serem e poderem ser secundários, quer à insuficiência cardíaca, quer às infeções respiratórias, de acordo com José Duarte, convém ter estes doentes sob uma vigilância e monitorização apertada. Acrescenta que se um doente cardíaco aparentemente estável com a sua terapêutica habitual começar a referir agravamento da falta de ar, cansaço ou queixas inespecíficas, deve ser observado o quanto antes, ressalvando que, nesta altura da pandemia, tem de se excluir a probabilidade da infeção pelo vírus SARS-CoV-2.
Realmente a COVID-19, para Duarte, representa um dos grandes desafios para todos, comunidade científica, classe política, população e a nossa fonte reafirma que a luta contra esta doença tem unido as comunidades científicas internacionais na procura de soluções para o seu combate. Entretanto, considera ser uma “realidade irrefutável” que a concentração da atenção só na COVID-19 tem trazido prejuízos para várias doentes, especialmente para aqueles com suspeita de doença oncológica, e que tem sentido, na pele, as consequências do adiamento das consultas ou da realização dos exames complementares. Segundo José Duarte, este deve ser mais uma razão que deve despertar as pessoas para a gravidade da situação e tentar, com todas as medidas ao dispor, combater esta terrível doença.
Doenças cardíacas líder das evacuações
A cardiopatia isquémica, a arritmias cardíacas e as doenças valvulares são as patologias cardiovasculares que mais têm afetado os doentes desta especialidade evacuados de Cabo Verde para Portugal e merecem uma atenção acrescida. Esta informação foi prestada por este médico-cardiologista que trabalha no Hospital Santa Maria, instituição que recebe grande parte dos pacientes oriundos do arquipélago.
José Duarte fez saber ainda que a cardiologia é a especialidade mais procurada no processo de evacuação de doentes de Cabo Verde para Portugal, com o registo de crescimento constante de doentes com esta patologia, citando para tal afirmação a sua longa experiência e ao facto de, enquanto cabo-verdiano, um número significativo destes doentes serem encaminhados para a sua consulta. Rrelativamente à cardiopatia isquémica, aqueles com suspeita de doença das artérias coronárias, com angina de peito ou que já tiveram enfarte, José Duarte chamou a atenção para o facto de o seu combate constituir-se um desafio e que implica uma estreita colaboração entre os técnicos de saúde e o poder político.
“Nos doentes com cardiopatia isquémica a maior parte vem para a realização de cateterismo cardíaco. Muitos são tratados através da angioplastia coronária e alguns, encaminhamos para a cirurgia de bypass”, indica, realçando que, a este propósito, há um crescente do número de cabo-verdianos, entre os 40 a 50 anos, que sofrem desta doença importante e grave das artérias coronárias.
No entender deste cardiologista isto, provavelmente, tem a ver com a modificação do perfil do risco em Cabo Verde, com as alterações do estilo de vida e com o aumento da incidência dos fatores de risco modificáveis. De acordo com este médico cabo-verdiano, já os pacientes com arritmias são, na maior parte, para o tratamento com implantação de pacemaker permanente (na linguagem popular, para colocação de uma pilha no coração), são geralmente idosos, com grandes dificuldades com a língua portuguesa e a necessitarem, quase sempre, de acompanhamento por um familiar. “A realização desta técnica em Cabo Verde evitaria este incómodo da deslocação para o estrangeiro deste grupo populacional e reduziria os custos relacionados com a evacuação”, afirmou José Duarte.
Doenças das válvulas cardíacas
No tocante aos utentes com doenças das válvulas cardíacas, este cardiologista diz que a a situação é mais complexa e que grande parte dos casos é encaminhada para a cirurgia. Fez saber ainda que esta abordagem é multidisciplinar e o processo complexo e mais demorado que o dos grupos com as outras patologias mencionadas. Nesta altura, Duarte diz ver o seu regresso a Cabo Verde mais distante devido a compromissos pessoais e familiares em Portugal, Mas não fecha as portas em relação a colaborações futuras e concretas. Garante que existem algumas áreas em que será possível esta colaboração, desde que haja condições técnicas para tal. “Refiro-me à implantação de pacemakers permanentes, técnica facilmente exequível em Cabo Verde, e à realização de cateterismos cardíacos. Esta última, também possível, mas implica algum investimento e organização”.
Falando ainda da sua colaboração com Cabo Verde, por laços afetivos, este conta que tem tratado da grande parte dos doentes evacuados e outros referenciados para o Hospital Santa Maria, daí que, defende, perceber que este tipo de trabalho também seja importante. Diz que, com seu empenho, muitas situações são resolvidas e tratadas num espaço de tempo menor do que seria expectável, reduzindo a permanência dos mesmos em Portugal.
De acordo com este especialista, são inegáveis os avanços na Cardiologia, em todas as áreas de actuação e que têm contribuído para diagnósticos mais céleres, melhor estratificação e orientação dos doentes, terapêuticas cada vez mais eficazes, quer com medicamentos, quer com dispositivos médicos e na diminuição da mortalidade cardiovascular o que, no seu entendimento, resulta numa melhoria da qualidade de vida dos doentes.
De Chã de Alecrim para maior hospital luso
José Duarte, nascido na ilha do Sal, tem 62 anos. É casado e pai de dois filhos. É o primeiro de cinco irmãos. Disse ser médico por opção e exerce a atividade há mais de 35 anos. Autodefine-se como um homem de convicções, realizado profissionalmente, exigente consigo próprio e pouco tolerante com a incompetência.
Aos cinco anos mudou-se com os pais para S. Vicente, tendo a família fixado em Chã de Alecrim, na altura um descampado, com algumas ‘ilhas’ de casas dispersas, separadas por amplos espaços de terra solta. Os acessos eram de terra batida sendo uma constante o vento que soprava de João d’Évora. Conta ainda que a sua infância, adolescência e juventude foram apaixonadamente vividas em Chã de Alecrim.
Duarte recorda que foi a mãe que, sem conhecimentos pedagógicos, o ensinou a ler e despertou nele o gosto pelo estudo e pelo conhecimento. Fez a instrução primária na Escola Nazarena do Mindelo e o ciclo preparatório, no Liceu Gil Eanes. Oriundo de uma família Cristã, da igreja do nazareno, a educação de José Duarte e dos irmãos, segundo ele, foi assente nos bons costumes, na lealdade e no amor ao próximo.
Considera que teve uma infância normal, similar a de vários miúdos da sua geração. Jogava a bola descalço e, conforme disse este cardiologista, fez todas as traquinices próprias da idade. Este garante que, nesta altura, era um privilégio frequentar o ensino secundário. Admite que foi um aluno médio, mas responsável. Da vivência com os amigos recorda com saudades, os encontros na Praça Nova, na Matiota, os programas que inventavam nas férias para ocupar o tempo e dos jogos de futebol no quintal do Kevin.
“Vivi, com muita emoção, o 25 de abril de 1974. Frequentava o antigo 5o ano. Participei na primeira greve realizada no Liceu, alguns dias após o 25 de abril, mas nunca me envolvi em atividades políticas”, lembra José Duarte, para quem este foi um período de grandes exageros e facilidades, fruto da descompressão política. Mas, no seu caso particular, nessa altura já tinha traçado a sua escolha e não tinha dúvida que queria mesmo ser médico.
Admite que Chã de Alecrim, a cidade do Mindelo e toda a ilha de São Vicente, marcaram, de forma indiscritível, todas as etapas da sua vida. Reconhece que algumas coisas mudaram, mas diz que quando visita a ilha, a sensação que tem é de que São Vicente parou no tempo.
“É com muita tristeza que vejo, cada vez que lá vou, mudanças que tentam apagar o passado. As grandes casas comerciais desapareceram. A Praça Nova já não é a mesma e os hábitos mudaram muito. Mas, por outro lado, houve muito progresso, o que suaviza as minhas mágoas”, sustenta. Admite ainda que Chã de Alecrim, onde cresceu, está irreconhecível, fruto do desenvolvimento. Ainda assim, a mercearia dos seus pais continua no mesmo local, com o nome de Codé, alcunha do seu irmão mais novo.
Frustrações e conquistas
Chegou a Portugal em janeiro de 1978 e o ano letivo já tinha começado, tendo afirmado que os primeiros dias foram de grande desapontamento, frustração e com uma enorme vontade de apanhar o avião de volta. A conclusão da licenciatura em julho de 1983 permitiu-lhe desfrutar de muitos meses de férias, uma parte delas passadas na ilha de São Vicente onde teve o primeiro contacto com doentes, já como médico.
“Durante três meses, trabalhei como voluntário no Hospital de São Vicente, que nessa altura funcionava nas instalações do antigo Telégrafo, na Praça nova” informou José Duarte ,para quem foi uma experiência encantadora e onde teve a oportunidade de estar com alguns “vultos” da medicina cabo-verdiana, caso por exemplo do Dr. Duarte Fonseca, Dr. Teófilo Menezes, Dr. Rosário, Dr. Arsénio Pina, Dr. Morais, de entre outros.
Em fevereiro de 1984 iniciou a primeira etapa pós a licenciatura com o internato geral de medicina, com a duração de dezoito meses. Este destaca o facto de ter tido o privilégio de realizar o seu internato geral no Hospital de Santa Maria. Foi neste hospital que desenvolveu a paixão pela cardiologia, especialidade que iria abraçar mais para a vida. A segunda etapa passava pela entrada numa especialidade. Nesta altura, participou do concurso nacional de acesso às especialidades médicas em que conseguiu ficar nos primeiros 50 lugares, a nível nacional, num total de 3.500 candidatos.
“Mercê disso, pude escolher a especialidade de cardiologia, numa unidade hospitalar onde sempre quis, o Hospital de Santa Maria. A especialidade teve a duração de cinco anos. Já como especialista, exerci atividade no Hospital Garcia de Orta, como assistente hospitalar, durante sete anos. Mais tarde, regressei à casa mãe, Santa Maria, onde permaneço, como assistente hospitalar de cardiologia, com o grau de consultor” conclui.