Pub.
CarnavalOpinião
Tendência

“Carnaval 2024” – É pa êz dánu sima êz

Pub.

“Nu ca sta pidi máz qui ez. Nem nu ca sta pidi pa ez dixi valor qui ez ta da S. Vicenti e S. Nicolau. É so pa ez dánu sima ez”. Assim, apaziguador e magnânimo. Este é o bordão que de ano para ano, os dirigentes dos grupos carnavalescos na Praia se revezam em reclamações generosamente descontextualizadas.

Por: José Manuel Araújo

Publicidade

Mas um governo idóneo tem a obrigação de contextualizar tudo aquilo que se lhe pretende servir de forma oportunista. E, fazendo-o, encontrará seguramente a fronteira definidora de dois grupos de
ilhas no país.

Grupo 1: Ilhas de S. Vicente e S. Nicolau; grupo 2: Restantes ilhas, das quais, Santiago (Praia para o que aqui interessa) é parte.

Publicidade

Se subscrevo os alertas do Ministro da Cultura quanto à graduação dos níveis dos carnavais das ilhas com base no mérito organizativo, na beleza, ou na exuberância e poderio económico, não serão estes entretanto, os critérios que também elegem o carnaval mindelense ao tratamento diferenciado que merece receber. Caso assim fosse, bastaria à Santa Luzia ganhar no totoloto e fazer um implante do carnaval mais rico e exuberante, para que da noite para o dia se tornasse a nova eleita a esse tratamento diferenciado, fazendo tábua rasa de todo percurso, trabalho e dedicação desinteresseira e genuína de S.Vicente à causa do carnaval.

A separação da realidade em dois grupos de ilhas, põe a nú o modo como a sua descontextualização permite uma sorrateira transladação do carnaval da Praia, do segundo para o primeiro grupo, num reposicionamento que a permite acenar com artificial autenticidade, os mesmos predicados do primeiro grupo.

Publicidade

Confiremos a evidência dessa artificialidade, extraída dos verdadeiros fatores delimitadores daquela fronteira, onde o poderio económico não se inscreve:
(Iº) S.Vicente e S.Nicolau, a não ser que continuem a insistir que cinzas é carnaval, são os únicos carnavais do país que existiam muito antes da independência; no grupo da Praia os carnavais passaram a existir a partir da década de 80 após a independência;

(IIº) S.Vicente e S.Nicolau são as únicas ilhas onde o carnaval corresponde ao manifesto duma emanação e tradição populares; no grupo da Praia, os carnavais são fruto duma determinação politico/administrativa das respetivas Câmaras Municipais que os impuseram ao povo.

(IIIº) Em S.Vicente, a festa de S.Silvestre anuncia o início imediato do novo momento cultural, que só terminará no domingo do enterro do carnaval. Contas feitas, se a Terça-Feira do carnaval for em fevereiro, o carnaval mindelense prolonga-se por mais de um mês e se for em Março, estender-se- á por mais de dois meses; no grupo da Praia, nada de parecido acontece.

(IVº) Em S.Vicente, o carnaval é um evento denso e compacto, vivido intensamente (os ensaios, os mandingas não só aos Domingos mas em tudo quanto é evento, os assaltos, os tralhas que estão de regresso, os sons nos bares, nas mercearias, nas lojas, no transeunte que carrega o seu pequeno equipamento sonoro) dizia, sendo tudo e o tempo todo, carnaval; no grupo da Praia, nunca se viveu o carnaval com semelhante intensidade;

(Vº) O carnaval de S.Vicente atingiu o elevado nível por mérito próprio, bem antes de qualquer apoio governamental. Aliás, fora em 2016 que, reconhecendo e aceitando com determinação o percurso e o nível atingido por este carnaval, o partido, ainda na oposição, compreendeu a grande injustiça que se vinha perpetrando ao longo de anos contra S.Vicente, ao não considerar e nem agir em coerência relativamente a toda esta fascinante e genuína particularidade cultural da ilha de S.Vicente chamada carnaval; no grupo da Praia, nada de semelhante se verificou.

(VIº) Em S.Vicente, o carnaval se fez grande, sempre tendo que derrubar as frequentes sombras e ameaças de que a grandeza de um evento só pode ser avaliada pelo tamanho do seu poderio económico; no grupo da Praia, nem mesmo entre os que levantam bandeiras como mais território, mais população ou mais riqueza, conseguiram algo com tamanha dimensão, sustentado na qualidade mas principalmente, na verdade carregada na alma.

(VIIº) Em S.Vicente e S.Nicolau, o ato de praticar o carnaval é e sempre foi movido única e exclusivamente pela autenticidade, espontaneidade e pelo amor a esta manifestação e tradição, sem
artificialismos e sem desnaturar a mecânica e o espírito do exercício da cultura; será que no grupo da Praia, poderemos dizer o mesmo em relação a todas as suas ilhas? Ou se deve esquecer daquela que de incansáveis declarações de desprezo, agressividade, chegando a manifestações de ódio contra o carnaval e os seus autores e atores, acaba por colocar qualquer observador atento perante sérias dificuldades em encontrar uma lógica saudável entre essa atitude de frontal e afrontosa repulsa pelo carnaval e o simultâneo interesse paradoxalmente demonstrado pela mesma, em querer também apresentar-se como terra de gente igualmente apaixonada pelo carnaval?

Uma contradição tamanha, que não permite outra interpretação que não a de que, apercebendo-se da natureza dum percurso de sucesso em S.Vicente, a imitação dos seus tiques e gestos, de práticas e iniciativas, foi vista como a jogada de mestre para uma transladação de grupo que legitimasse reclamações por igual tratamento. Ou, quiçá a forma de tentar puxar o tapete e vulgarizar o prestígio e consequente estatuto conquistado pelo carnaval duma ilha que tem feito de tudo para o engrandecer e com ele engrandecer o país, muito antes de pensar em financiamentos.

Em concreto, estes dirigentes carnavalescos reclamam dos 250 contos e dos 50 contos que recebe respetivamente cada grupo da Praia e do Fogo, que no seu entender deveriam receber o mesmo que S.Vicente e S.Nicolau.

Uma reivindicação que coloca o país perante duas alternativas sem alma cultural:

1ª) Esses dirigentes não se aperceberam que no seu grupo existem outras ilhas como Santo Antão, Sal, Boavista, Maio e Brava, que também mereceriam estar incluídas nessa reclamação? Ou estaremos perante um jogo em que a ilha do Fogo é utilizada simplesmente como muleta de apoio para reforçar e camuflar o sentido localista da reivindicação?

2ª) Por outro lado, tendo todas as outras ilhas do seu grupo esse mesmo direito, a sua pretensão se afigura como um ensaio que propõe ao governo o esmigalhamento do financiamento do carnaval por todo o país, num valor que poderia se destinar ao fortalecimento do carnaval em duas ilhas com expertises e genuinidade comprovadas. Isto é, uma proposta para promover um equilíbrio artificial e forçado entre o carnaval das diferentes ilhas, de onde, a única prejudicada seria, obviamente, a única com curriculum bastante por onde se prejudicar, fazendo cair por terra, anos de dedicação desinteressada.

E neste caso, já não estaremos perante uma simples manifestação de oportunismo localista mas sim, dum capricho egoísta e maldoso por parte de quem aspira nos colocar perante duas únicas alternativas capazes de o satisfazer: (I) ou ela será objeto dum tratamento privilegiado e diferenciado que a promova para o grupo de S.Vicente e S.Nicolau; (II) ou não aceitará outro caminho que não o da implosão de tudo o que lhe estiver à volta, através do esmigalhamento do financiamento destinado ao carnaval.

Isso sim, seria a proposta de uma verdadeira hecatombe civilizacional, moral, cultural e histórica, caso suscitasse quaisquer dilemas existenciais a qualquer responsável do país. A VER VAMOS!!!

Mostrar mais

Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo