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O mundo às avessas

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Já perdi contas aos postings nas redes sociais, a denunciar o abandono em que se encontra a ilha de S. Vicente com incidências tangíveis sobre a saúde física e mental dos seus habitantes.

Por: Sónia Almeida

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Quantas vezes não ouvimos que pessoas – idosas, doentes, funcionários e crianças – passaram a noite em claro, embaladas, ora pelo latir incessante dos cães vadios e sarnentos que circulam livremente pela ilha, defecando aqui e ali, ou eviscerando os sacos de lixo pela cidade fora; ora pelo barulho ensurdecedor de motas que zigzagueam, abertamente, de rodas ao ar e nas mais inverosímeis acrobacias, na barba cara das «autoridades» ; ou ainda pelos grupinhos da ‘night’ aos berros e cuja linguagem faria um tomate corar de vergonha.

Em relação à questão das motas, em particular – por viver nas proximidades do Comando da Polícia desta ilha, onde este tipo de comportamento, no mínimo anti-social e nocivo, continua a ser exibido -, sempre tive uma certa dificuldade em perceber a persistência desse comportamento que se transformou numa verdadeira praga, porque exibida de forma aberta e desafiadora nas principais artérias da cidade. Afinal, trata-se de uma pequena ilha e não propriamente de resolver uma questão de física quântica.

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As minhas dúvidas, incertezas e perplexidade sobre o assunto, foram clarificadas por um agente da
polícia, num incidente muito recente. Não sei se serão fidedignas de tão insustentáveis e inaceitáveis que são, tanto do ponto de vista legal como ético. Uma vida em sociedade, na «Polis», já dizia Platão há 2500 anos, só é possível a partir da adesão de todos às leis e à ordem pública, o que implica uma certa ordem e respeito pelos outros. E, 2500 anos depois, ainda andamos nós cá à deriva…

Passando, à frente do Comando da Polícia, em plena luz do dia, vejo uma mota em acrobacias, de rodas para o ar, num vrombido ensurdecedor, em frente a um automóvel da polícia, em modo de total desrespeito às autoridades. Ainda sem estacionar o carro, saiu um dos polícias que, para o meu espanto, não se dirigiu ao motociclista em infracção descarada e provocante à lei, por condução
perigosa; estaciono o meu carro e dirijo-me ao agente em questão para tentar perceber o que acabara de se passar, e dar sentido ao que os meus olhos viram mas não acreditaram.

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Respondeu-me que os agentes não estão autorizados a intervir nesses casos, a menos que recebam ordens expressas da hierarquia para uma operação precisa e específica». Acrescentou que tem havido operações esporádicas e que têm sido apreendidas centenas de motos, sem que contudo, estaremos todos de acordo, se tenha resolvido o problema. Quer isto dizer que os motociclistas surpreendidos em flagrante delito de condução perigosa e comportamento anti-social, podendo mesmo pôr em perigo a vida de outros cidadãos, são livres de violar a lei, na certeza, porém, da sua total impunidade.

A questão que me veio à mente nesse momento foi o que aconteceria se o condutor de um veículo
se pusesse a gincanear e ziguezaguear pela cidade fora? Teriam os agentes da polícia autoridade
para o interceptar ou teriam que esperar por ordens expressas da hierarquia? Porque, se for este o
caso, estamos muito mal. Na realidade, seja qual for o caso, não estamos mal, mas péssimos.
No primeiro porque a lei seria selectiva e não aplicável a todos os cidadãos de igual forma, como
seria de esperar num Estado de Direito; no segundo porque significaria um regresso ao estado de
natureza Hobbesiano que posto de forma muito simplificada, “é cada um por si e Deus por todos”.

A questão dos cães e do saneamento público, bem como a moda de pessoas “se aliviarem” em público, dia e noite, e o seu o corolário odor fétido, de urina e mais, que tresanda alegremente por uma cidade, que se quer turística, fazem parte da mesma praga e campanha. O objectivo, estou convicta, é certamente o de vencer o povo desta ilha pelo cansaço. Já dizia um meu amigo angolano: «Que até aos sapatos apertados nos habituamos», referindo-se ao período de guerra civil em Angola.

E, de facto, para muitos já é normal ver matilhas de cães pela cidade fora. Já é trivial por-se de pé ou
de côcoras num canto de rua, ou à frente da porta de um desgraçado, e aliviar-se. Embora, incomode, canse e adoeça, já é normal passar noites de insónia porque o cão do vizinho ou os cães vadios não se calam; já é absolutamente normal ir trabalhar depois de uma noite em branco porque os motociclistas podem, querem e mandam; já é normal não sair à rua para dar um passeio depois do por-do-sol porque o risco de “cassu body”, que já é grande por si só, aumenta de forma inversamente proporcional à escuridão em que vão sendo mergulhadas as ruas de Mindelo.

Vivemos numa “penumbrinha” constante e assustadora. Se tudo isto não faz sentido, qualquer que seja o ângulo de análise, a questão que se impõe, obviamente, é a razão da possibilidade da existência e persistência de uma situação tão absurda e desnecessária.

É certo, e não terá escapado a ninguém, que o nosso mundo encontra-se em plena mutação, afectando os valores e o próprio pensamento. O que antes era certo ou errado, derivando de valores morais e éticos ou de factos tangíveis e mesmo cientificamente provados, hoje são relativizados à luz de interesses políticos e lobbies mais ou menos obscuros e de onde emanam eflúvios autoritários.

O pensamento individual e o livre arbítrio são substituídos por um fundamentalismo global e pensamento e linguagem uniformizadas. Privada aos poucos das suas possibilidades hermenêuticas, a linguagem manipulada acaba por gerar uma dissociação entre o pensamento e a coisa efectivamente pensada. É um mundo de faz de contas extremamente perigoso.

Numa sociedade onde o desemprego é estrutural, a pobreza endémica, a injustiça institucionalizada
e a opacidade uma doutrina, teríamos mais razões para estranhar a apatia geral do que qualquer movimento de resistência. Testada, vezes sem fim, essa apatia resiste e persiste, para grande mal
dos nossos pecados. Mas ainda assim não perco a esperança de ver esta ilha estimada, cuidada e desenvolvida de forma harmoniosa como merece.

Até lá, entre um Presidente “poeta”, com matizes narcisistas, um Primeiro Ministro deslumbrado e
com a eterna expressão de quem precisa dum GPS e uma CM completamente inútil, todos igualmente empenhados em transformar Mindelo no pior do Terceiro Mundo, só Deus nos pode acudir.

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Constanca Pina

Formada em jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF-RJ). Trabalhou como jornalista no semanário A Semana de 1997 a 2016. Sócia-fundadora do Mindel Insite, desempenha as funções de Chefe de Redação e jornalista/repórter. Paralelamente, leccionou na Universidade Lusófona de Cabo Verde de 2013 a 2020, disciplinas de Jornalismo Económico, Jornalismo Investigativo e Redação Jornalística. Atualmente lecciona a disciplina de Jornalismo Comparado na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

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