A comunidade cabo-verdiana de Itália, sobretudo a de Roma, guarda na memória muitas recordações do legado que Celina Pereira deixou como cantora, escritora e contadora de histórias do nosso mundo infantil.
Em Itália conhecemos Celina como cantora graças ao nosso amado Hernâni Moreira, grande impulsionador da nossa cultura no país e em Cabo Verde. Com ele, tomamos consciência do valor e do poder da cultura e da nossa identidade como cabo-verdianos e como emigrantes. Hernâni desafiou-nos a fazer uma nova leitura, pós-independência, da nossa realidade cultural e identitária, com iniciativas de alto nível cultural que atirasse também o publico italiano.
Em 1987 Hernâni, como presidente da Associação Cabo-verdiana em Itália, organizou a “Semana de cultura cabo-verdiana” para celebrar o dia 5 de Julho, nos grandes palcos frequentados pelo público italiano, no centro da cidade de Roma com um rico programa divulgado através da televisão, radio e jornais. Os maiores artistas da nossa cultura musical foram convidados para esse evento. Celina Pereira, Titina Rodrigues, Luís Morais, Paulino Vieira, Kiky Lima, Vasco Martins e Leonel subiram ao palco com o grande entusiasmo do publico cabo-verdiano que os acompanhava cantando e dançando, num delírio, como se fosse a ultima vez nas suas vidas.
No ano seguinte, 1988, intensificaram os debates públicos e as manifestações a favor da libertação de Nelson Mandela e os artistas do mundo inteiro subiram ao palco, para combater, através da musica o regime de Apartheid na África do Sul. No dia 17 de Julho é a vez da Itália. Hernani Moreira convida os nossos artistas Celina Pereira, Titina, Paulino Vieira, Luís Morais, Conga Tropical, Bebete, Adão Ramos e Cise Lopes, a participar no palco de Castel Sant’angelo, juntamente com outros artistas internacionais, unidos na mesma luta da libertação de Nelson Mandela.
Em 1992, a convite da OMCVI em Roma, Celina participou com grande entusiasmo numa manifestação contra o racismo e pela cooperação entre os povos, no palco da Piazza del Popolo, dedicado ao continente africano. O evento foi organizado pela Camara de Roma, juntamente com as comunidades emigradas nesta cidade que Celina tanto amava. Mas é como escritora e como contadora de histórias da nossa infância que Celina Pereira estabelece e reforça os laços de amizade com a comunidade cabo-verdiana em Itália, através da associação das Mulheres cabo-verdianas em Itália e da associaçao Tabankaonlus.
Foram editadas duas publicações: o audio-livro “Estoria Estoria nell’Arcipelago delle Meraviglie” e “Estoria Estoria …Do tambor ao Bulimundo”, juntamente com a ilustradora italiana Claudia Melotti, em 4 línguas: criol, italiano, português e inglês. O audio-livro foi o instrumento didáctico que precisávamos.
Foi um dos primeiros livros a ser utilizado nas escolas italianas e em vários encontros com as nossas crianças guiadas pela Celina em Roma, Nápoles, Firenze e Milão, contando histórias, e brincando como a gente fazia na nossa infância. Foi uma bela descoberta para as crianças. Ajudou a criar uma identidade cultural aos nossos filhos que chegaram ainda adolescentes em Itália. Graças ao audio-livro fomos uma das primeiras comunidades estrangeiras a entrar nas escolas envolvendo muitas crianças italianas, a cantar Bulimundo, e os nossos filhos a sentirem-se orgulhosos da própria identidade, da sua história e da sua cultura.
Celina Pereira foi uma mulher de classe, culta, consciente da sua missão de cantora, escritora, investigadora das antigas melodias do nosso repertório musical, das cantigas e das fábulas da nossa infância. Uma mulher que dedicou uma vida inteira à paixão da sua vida: a musica e a cultura cabo-verdiana. Foi uma grande Embaixadora da nossa cultura.
Lembro-me (num jantar com o nosso amado Hernâni) Celina abordou, com muita seriedade, a valorização da morna. Ouvi pela primeira vez ela dizer que Cabo Verde deveria avançar a candidatura da Morna para ser reconhecida como Património Imaterial da Humanidade pelo UNESCO. É por esse legado e pela amizade que sempre nos uniu, uma amizade consolidada ao longo de muitos anos, que quero aqui manifestar a minha imensa gratidão e reconhecimento à Celina Pereira, na certeza que vamos manter erguida a tua bandeira. Continuaremos a cultivar, a divulgar e a defender a nossa identidade e as raízes da nossa cultura, em seu nome.
Beijos Crioulos a Cretcheu mas sabi. . .
Maria de Lourdes Jesus
Fotos: Marzio Marzot