A ortografia em Alupec cria uma dualidade ortográfica preocupante com os vocábulos que derivam do português moderno. Algumas variantes do Crioulo de Cabo Verde têm como base o Português Moderno e resíduos de outras línguas latinas e o Inglês (particularmente em São Vicente). A história de uma língua reflete a história dos homens que falam essa língua.
Por: José Henrique Delgado da Cruz
A variante de Santiago é basiletal, tem como base o Português Quinhentista. Representa a história da ilha mãe. A primeira ilha a ser povoada, com escravos e portugueses (alguns outros europeus) no século XV. Como todas as outras variantes tem o Português como língua lexificadora. Quando aparece uma ideia nova, uma coisa ou conceito, vamos buscar a palavra ao léxico português.
Há algumas exceções fonológicas. Por exemplo, a palavra “eleição” em algumas ilhas é eleição, em Santiago é “eleiçon”. O que aconteceu aqui é que a variante de Santiago conservou o ditongo “on” do Português Medieval.
Com a generalização da escrita, esse som criou uma deriva ortográfica, uns escreviam “coraçon”, outros “coraçom”, outros “coraçõn”, outros “corason”etc. Através de um Acordo Ortográfico, estabeleceu-se que o ditongo final nesses casos seria “-ão”. Essa unificação ortográfica acabou por influenciar a oralidade. O “on” final desaparece em quase todo o território português, mas mantêm-se em algumas variantes de crioulos de base lexical portuguesa.
Este é um caso interessante para ver como a escrita pode influenciar a oralidade. Pois a escrita é extra língua, é artificial. A escrita é a tentativa de representação gráfica dos sons da língua, é um travestissement.
As crianças escreverão as mesmas palavras de línguas diferentes (Crioulo e Português) com dois sistemas ortográficos diferentes, e uma delas mais simples por ser fonológica e outra mais complexa por ser etimológica. Há palavras em Português que só as conseguimos escrever devido a memória da escrita, o que é um estímulo excelente para o nosso cérebro, este está preparado para receber e interpretar estímulos complexos.
Por exemplo a palavra “necessidade” em Português escreve-se com grafemas diferentes para o mesmo som. No Crioulo, usando o Alupec “nesesidade”.
O mesmo grafema para o mesmo som. De acordo com o princípio do menor esforço, em pouco tempo vão usar o Alupec para escrever o Português.
Falo disso da minha experiência como professor de Latim. Sendo a ortografia fonológica, os adolescentes adquirem facilmente os mecanismos ortográficos do Latim. A diferença é que são adultos alfabetizados com a ortografia etimológica do Português.
Com crianças será um grande problema serem alfabetizados com sistemas ortográficos diferentes para o mesmo som. É óbvio que com o tempo o Alupec acabará por sobrepor.
A ortografia com o Alupec influenciará posteriormente a oralidade, principalmente na questão das vogais mudas, nos encontros de sibilantes, nos grafemas com um único fonema, nos fonemas com vários grafemas etc.
E qual a variante que pode vir a influenciar as outras? Será obviamente aquela que for mais escrita. E como disse, a escrita é artificial, a oralidade é natural mas pode ser influenciada por fatores extralinguísticos.
Muitos dirão que nunca se vão deixar influenciar.
E as crianças? Serão elas os adultos daqui a alguns anos. Alguém já perguntou por que não se adaptou textos de Eugénio Tavares (até traduziu para Crioulo textos de Camões), Sérgio Frusoni, Pedro Cardoso, B.Leza, Corsino Fortes, Manuel d’Novas, para o Alupec? Em qualquer país os textos que servem de base para o estudo da língua materna são textos dos seus poetas e escritores. Que variantes são mais conhecidas no mundo nas músicas cantadas por Cesária Évora?
Porquê a azáfama em traduzir a Constituição duas vezes na mesma variante e textos como o Principezinho?
A propósito alguém lançou a dúvida: Como escrever a palavra “piscina” em Alupec? “Pixsina, pissina, pisina?”
Com a ortografia em Alupec as palavras perdem a sua história. A escrita do encontro de sibilantes é das coisas mais lindas das línguas latinas. Cada uma com a sua memória. O vocábulo piscina vem do latim “pisces”, que significa “peixe”. Em Roma as piscinas eram utilizadas para criação de peixes. Não tinham o uso que lhes é dado hoje.
A complexidade do Latim advém do seu sistema morfossintático. O Português e os crioulos de base lexical portuguesa perderem essa complexidade, mas mantiveram a memória latina na etimologia das palavras. A escrita do Crioulo deve representar essa memória latina. A palavra piscina só tem memória se tiver o encontro de sibilantes “sc”.
Com o Alupec a filologia do crioulo na sua vertente românica desaparece, pois ela tem como objeto específico as línguas e dialetos que se originaram do latim vulgar, e suas respectivas literaturas de qualquer espécie, desde as origens até a sua situação atual.
As palavras têm memórias como as pessoas. O Crioulo é uma língua de base lexical latina e a sua história começa obviamente pela história do português.
Não apaguem a memória da nossa língua!