A professora cabo-verdiana Ana Josefa Cardoso, que leciona em Portugal, considera que o sistema educativo cabo-verdiano “peca pela pouca importância que dá às temáticas relacionadas com a Língua, a História e a Cultura Cabo-verdianas”. A docente da disciplina do Português Língua Não-Materna (PLNM) disse ainda que, enquanto os cabo-verdianos andarem de costas voltadas para a língua materna (crioulo), o português vai continuar a manifestar muitas fragilidades e a ser a “língua de constrangimento” para a maioria das pessoas. Ana Cardoso tem sido uma das figuras da telescola adoptada no âmbito do Estado de Emergência em Portugal devido ao Covid-19, com o ensino da disciplina PLNM, esta é aliás uma das razões desta entrevista. Nesta conversa em exclusiva com o Mindelinsite, esta educadora apelou a uma aposta forte na formação dos professores em Cabo Verde para que se sintam seguros na transmissão da língua e que o português não seja visto pelos alunos como uma língua penalizadora.
– Por João A. do Rosário –
Mindel Insite – Tem sido um dos rostos do momento da Telescola em Portugal. Conte-nos como tem sido a experiência?
Ana Josefa Cardoso – Esta experiência tem sido sobretudo uma oportunidade de aprendizagem e um grande desafio. Estamos a ensinar num ambiente que nos é estranho e para um público desconhecido com quem pretendemos estabelecer uma relação de ensino-aprendizagem que seja motivadora e profícua. Há algum nervosismo durante as gravações porque não estamos habituados a este novo ambiente e sentimos a falta de interação real que existe numa sala de aula de verdade. Temos consciência que a nossa exposição é alvo de muitas críticas (algumas delas pouco abonatórias), mas isso torna-se irrelevante em comparação com os objetivos deste projeto da Telescola, que visa sobretudo chegar a todos os alunos, mas principalmente àqueles que ainda não têm acesso à internet. Esse é um objetivo nobre que engrandece todos aqueles que tiverem a oportunidade de dar o seu contributo.
MI – Enquanto cabo-verdiana, este papel que está a desempenhar pode constituir um motivo de orgulho para a nossa comunidade em PT e para todos os cabo-verdianos no geral. O que acha disto?
AJC – É sempre importante que as comunidades se sintam representadas de forma positiva e que os seus membros também sejam valorizados como cidadãos capazes, activos e intervenientes nos países de acolhimento. Tal como me sinto feliz de ter nascido cabo-verdiana, como diria o nosso saudoso Ildo Lobo, também espero que os cabo-verdianos se sintam felizes com o contributo desta conterrânea no projeto da Telescola em Portugal.
MI – Lecciona a disciplina de PLNM. Professora, muita gente questiona o por quê do Português Língua Não Materna. O que diferencia a disciplina de PLNM da própria disciplina de Língua Portuguesa?
AJC – A disciplina de Português Língua Não Materna, como o próprio nome indica, tem como público-alvo alunos que não têm o português como língua materna, ou seja, aqueles que no seu país de origem e no seio da sua família utilizam outra língua materna diferente do português, quer sejam eles estrangeiros ou portugueses emigrantes em situação de retorno. Ela destina-se aos alunos que chegaram a Portugal e que o seu domínio da língua portuguesa ainda não é suficiente para acompanhar uma aula de Língua Portuguesa (língua materna) com sucesso. Nesta disciplina, os alunos desenvolvem sobretudo o português do quotidiano e a língua de escolarização que lhes permite desenvolver a sua competência comunicativa para melhor integrarem a disciplina de Português regular. A permanência do discente nesta disciplina depende do seu nível de proficiência linguística no Português. Podemos considerar que se trata de uma disciplina transitória. Quando este supera com sucesso o nível intermédio B1 (quem tiver interesse pode consultar o Quadro Comum Europeu de Referência para as línguas, disponível em https://area.dge.mec.pt/gramatica/Quadro_Europeu_total.pdf, deixa de ter a disciplina Português Língua Não Materna e passa a frequentar a aula regular, pois considera-se que nesta altura o aluno já tem um domínio da língua portuguesa que lhe permite acompanhar com sucesso o currículo normal vigente da disciplina de Português.
“A disciplina de Português Língua Não Materna, como o próprio nome indica, tem como público-alvo alunos que não têm o português como língua materna, ou seja, aqueles que no seu país de origem e no seio da sua família utilizam outra língua materna diferente do português”
MI – Qual a mais-valia desta disciplina para os alunos de famílias imigrantes?
AJC – A mais-valia é sobretudo o facto de o aluno não ter de ser penalizado por o seu domínio da língua portuguesa não estar equiparado ao dos falantes nativos de português. No caso, este é avaliado de acordo com o nível de proficiência em que está inserido, o que de alguma forma permite que os seus progressos graduais da aprendizagem da língua portuguesa sejam suficientemente valorizados e seja bem-sucedido.
MI – Muitas pessoas de outras nacionalidades dizem que esta disciplina é uma forma, digamos, de discriminação dos próprios filhos. O que tem a dizer sobre esta opinião desses pais e encarregados de educação?
AJC – Como sabe, opiniões cada um pode ter a sua e não há nada que agrade a todos. A meu ver, esta disciplina vem facilitar a integração dos alunos recém-chegados. Os alunos que chegam à escola portuguesa e não dominam o português estão à partida limitados no acesso à informação veiculada não só na aula de português como nas restantes disciplinas porque, naturalmente, o ensino é feito em português. Se quisermos exigir que estes alunos que desconhecem a língua tenham o mesmo desempenho que os seus colegas que nasceram a falar português, estamos a colocá-los numa situação de desvantagem, pois não é justo nem aceitável que alunos com pré-requisitos diferentes tenham que seguir as mesmas metodologias para conseguir atingir ao mesmo tempo, os mesmos resultados que os seus pares. Há aqui uma questão de equidade, precisamos de atingir o mesmo objetivo, mas para consegui-lo com sucesso, é necessário que cada um tenha o método que melhor se adequa à sua situação.
MI – Certamente tem nas suas turmas vários alunos de origem cabo-verdiana. Como considera o desempenho destes alunos oriundos da comunidade?
AJS – O desempenho destes alunos não difere do desempenho dos restantes. Cada um é diferente. Há discentes que são empenhados e obtêm excelentes resultados e outros que têm mais dificuldade ou que são menos empenhados cujos resultados não são tão bons. O desempenho muitas vezes é influenciado pelo meio sócio-familiar e isso não é exclusivo de os da nossa comunidade. Acontece com alunos de diferentes origens, incluindo portuguesa.
Mentora do Projeto Bilingue
MI – Nunca pensou dar o seu contributo à Educação no seu país, Cabo Verde?
AJC – Não só pensei em dar o meu contributo como julgo já ter dado e espero ter oportunidade de continuar a dar. Fui mentora do Projeto de Educação Bilingue que foi desenvolvido entre 2013 e 2019, nas escolas de Ponta d’Água, na cidade da Praia, e de Flamengos, no Concelho de São Miguel. Durante esse período, outras escolas dos Concelhos de Tarrafal e São Domingos, em Santiago, e outras duas em São Vicente tiveram a oportunidade de experimentar a educação bilingue. Infelizmente, por motivos que me ultrapassam, tiveram de interromper a experiência. Apenas as turmas-piloto, iniciadas no ano letivo 2013-2014 se mantiveram ativas até ao final do ano letivo 2018-2019, a muito custo. Considero que foi um contributo bastante válido, que trouxe para a ordem do dia a temática da valorização da língua materna cabo-verdiana e a possibilidade da sua implementação no sistema educativo cabo-verdiano.
MI – O que acha do sistema educacional e da estrutura curricular do ensino cabo-verdiano, sobretudo, da docência do Português?
AJC – Considero que o sistema educativo cabo-verdiano peca pela pouca importância que dá às temáticas relacionadas com a Língua, a História e a Cultura Cabo-verdianas, isto para não falar dos temas relacionados com África. Infelizmente sabemos pouco sobre o nosso país e muito menos ainda sobre o nosso continente. Há um longo caminho a percorrer ainda.
Relativamente ao ensino do Português, considero que há muito a fazer. Congratulo-me com o facto de termos consciência que o Português é a nossa segunda língua e de termos bastante apreço por ela. Contudo, enquanto nos mantivermos de costas voltadas para a língua materna, o português em Cabo Verde vai continuar a manifestar muitas fragilidades e continuará a ser a língua de constrangimento para a maioria dos cabo-verdianos. Penso que deverá haver uma aposta forte na formação dos professores para que se sintam seguros na transmissão desta língua e que o Português não seja visto pelos alunos como uma língua penalizadora. Gostaria que todos os alunos pudessem assumir esta língua também como sua e se sentissem habilitados a servir-se dela com a mesma proficiência, a mesma naturalidade e mesma destreza com que utilizam a sua língua materna, mas no contexto cabo-verdiano, isso só será possível se a língua materna tiver lugar na escola e for ensinada de forma explícita e livre de preconceitos. Conhecendo melhor a língua cabo-verdiana estaremos mais habilitados para aprender melhor qualquer outra língua de forma mais consistente.
“Enquanto nos mantivermos de costas voltadas para a língua materna, o português em Cabo Verde vai continuar a manifestar muitas fragilidades e continuará a ser a língua de constrangimento para a maioria dos cabo-verdianos.”
MI – Enquanto professora de PLNM, e tendo em conta as dificuldades dos alunos em aprender o Português, o que acha então de uma possível introdução do ensino bilingue ou mesmo do ensino em cabo-verdiano?
AJC – Julgo que, pelas perguntas anteriores, já ficou claro que sou defensora do ensino da língua materna, como tem sido recomendação da UNESCO desde o início da segunda metade do século XX. Isso traria muitas vantagens aos alunos cabo-verdianos. Considero que o ensino bilingue seria o mais adequado ao contexto cabo-verdiano. Isso já era defendido pela nossa linguista Dulce Almada Duarte desde os anos 70 do século passado e foi materializado com sucesso na experiência de educação bilingue a que fiz referência. O nosso país é, ou deveria ser, um país bilingue, mas, para sermos efetivamente bilingues, é necessário criar condições para que ambas as línguas se desenvolvam de forma saudável e responsável e o desenvolvimento pleno de ambas as línguas terá de passar necessariamente pela escola. A nossa legislação é favorável à introdução da língua materna no ensino, mas, aquilo que conduz à mudança são as ações, e essas têm sido poucas, para não dizer nulas, nesta matéria.
MI – Professora, sabemos que os seus colegas conterrâneos em Cabo Verde comemoraram no dia 23 deste mês o Dia do Professor, sente este dia também como seu? Qual é a mensagem que lhes quer dirigir neste momento difícil para todos?
AJC – Naturalmente que também sinto este dia como meu, embora aqui em Portugal o Dia do Professor coincida com o feriado nacional de 5 de outubro (Dia da Implantação da República) e acaba por passar despercebido. Os professores merecem todas as homenagens que lhes possamos fazer. Desempenham um papel fundamental na formação global do indivíduo e têm uma enorme responsabilidade na construção das sociedades, apesar de muitas vezes o seu papel parecer invisível. Muitas vezes a sua importância não é valorizada, mas sem professores não teríamos médicos, engenheiros, economistas, escritores, advogados, cientistas pensadores, políticos, … enfim. Todos passaram pela escola.
Nestes tempos difíceis quero deixar uma mensagem de esperança a todos os colegas professores e dizer-lhes que o nosso papel é fundamental para o desenvolvimento da humanidade e que por isso devemos cumprir a nossa missão com orgulho e esforçar-nos diariamente para melhorar o nosso desempenho, mesmo que outros não lhe deem o devido valor.
BIOGRAFIA
Ana Josefa Cardoso nasceu em Cabo Verde e reside em Portugal desde 1975. É licenciada em Ensino de Português/Francês, pós-graduada em Ensino de Português como Língua Não Materna e mestre em Relações Inter-culturais . Desenvolve investigação nas áreas de Cabo-verdiano, Bilinguismo e Aquisição de L2. É professora de Português do 2º ciclo do ensino básico desde 1993, formadora certificada pelo Conselho Científico e Pedagógico da Formação Contínua nas áreas de Didática Específica de Língua Cabo-verdiana, Língua Portuguesa, Português Língua Não Materna e Educação e Multiculturalidade.
Tem participado em diversos projetos escolares de cariz intercultural, com destaque para o projeto Turma Bilingue Português/Cabo-verdiano (2008-2012) coordenado pelo ILTEC – Instituto de Linguística Teórica e Computacional, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Foi membro da Comissão Nacional para as Línguas de Cabo Verde (CNpL) e mentora de uma experiência-piloto de Educação Bilingue em Cabo Verde, aprovada pelo Ministério da Educação (2013 e 2019). Tem alguns artigos publicados em revistas e capítulos de livros e tem feito alguns trabalhos de tradução para língua cabo-verdiana.
Foi condecorada pelo Presidente da República de Cabo Verde com a Terceira Classe da Medalha de Mérito, em 2015.