O documentário “Coração d’poeta”, que retrata a vida e obra do compositor Manuel d’Novas, foi ovacionado por duas centenas de pessoas que ontem à noite encheram o auditório Onésimo Silveira para assistir a sua ante-estreia. Após duas horas de sessão, o público reagiu com uma forte salva de palmas que não deixou margens para dúvidas. Para os presentes, o filme está ao nível daquilo que era de se esperar da grandisiodade das composições de Manuel d’Novas e sua trajectória de vida e ainda pelo facto de ter sido realizado pelo próprio filho do malogrado. O trabalho levou seis anos de pesquisa, entrevistas e edição, mas o cineasta Neu Lopes confessou à imprensa que nem sentiu o peso do tempo.
“Demorou seis anos porque foi preciso fazer muita pesquisa por causa do peso desta responsabilidade. Podia levar mais tempo, mas felizmente que tive a ajuda de muita gente que tinha algo sobre a sua obra e a sua pessoa e que me deram depoimentos excepcionais. Foi delicioso descobrir muita coisa sobre o Manel”, confessa o autor.
Ao longo da obra, a vida desse filho de Penha d’França é contada através tanto dos depoimentos como das muitas composições e momentos de convívio social passados especialmente na cidade do Mindelo. E, sendo Manuel d’Novas uma pessoa extrovertida, omnipresente e de extraordinária capacidade de compor através de uma palavra ou de uma cena – que sequer presenciou –, não faltam situações “cómicas”, cheias do humor tipicamente mindelense, que deliciaram a plateia. Como confessou uma mulher ao colega do lado, “Coração d’Poeta” é um trabalho “humoristicamente histórico”.
Para o cineasta, essas “tiradas” tornam o filme “leve” e “suave”, ao ponto de as pessoas sequer sentirem o tempo. “Não sentimos o tempo porque o filme foi montado de forma inteligente. O tempo passa depressa e nem queremos que acabe”, confirma Irlando Ferreira. Segundo este director do CNAD, a impressão que ficou é que estava perante uma obra urdida com calma, como um artesão faz quando quer dar corpo à sua criação. Na sua perspectiva, o documentário faz emergir a grandeza do compositor e trovador Manuel d’Novas. Aliás, realça, esse poeta teve a sorte de ter um filho com a capacidade e sensibilidade de Neu Lopes, que, por sua vez, assumiu a responsabilidade de devolver à sociedade cabo-verdiana a história de Cabo Verde através do olhar cirúrgico de Manuel d’Novas.
“Coração d’Poeta” é um trabalho “extraordinário”, mas, para Tanaia, ainda não retratou toda a dimensão do amigo e ex-colega de tocatinas. “Tive o privilégio de conhecer Manel e ficou ainda a faltar mais sobre a sua obra. Mas este filme serviu para levanter o véu. Como alguém disse nos depoimentos, Manuel d’Novas devia ser estudado nas escolas”, sublinha o músico, que enalteceu a qualidade das intervenções dos tantos entrevistados.
Para o compositor/intérprete Constantino Cardoso, é impossível dizer tudo o que foi Manuel d’Novas em “apenas” duas horas. “Ele tinha uma obra vastíssima, foram muitos anos de produção. Mas pelo menos ficou um excelente registo da sua história para a posteridade. Amanhã as pessoas já podem consultar este documento e saberem quem foi esse grande compositor.”
A obra, na perspectiva da professor Margarida Martins, foi em primeiro lugar uma bonita homenagem de um filho para o pai. No tocante ao conteúdo, diz, retrata a dimensão desse trovador. “As pessoas que deram os seus depoimentos foram sinceras e extrovertidas. Através daquilo que dizem, das músicas e das imagens podemos sentir o Manuel d’Novas e mergulhar numa parcela da história de Cabo Verde, em particular de S. Vicente”, considera Margarida Martins, que classifica Manuel d’Novas como um compositor de uma grande beleza e profundidade poética e melódica.
Manuel d’Novas, para Vlú Ferreira, é o “number one” da cultura cabo-verdiana e é bom que as pessoas tenham isso em mente. Por isso defende que o filme deve ser mostrado à geração actual para que os jovens possam conhecer parte importante da história de Cabo Verde, mas principalmente o poder criativo desse compositor. “Não estou a falar em se repetir aquilo que o Manel fez porque isso não se repete. Manel foi o produto da sociedade da sua época, embora fosse um visionário. Ele é grande porque soube transferir o seu pensamento sobre a sociedade cabo-verdiana como poucos conseguiram”, realça Vlú.
Manuel d’Novas, na opinião deste artista, é o expoente máximo da Morna e da Coladeira e não vê coincidência o facto de esse trabalho estar pronto numa altura em que se celebra a elevação da Morna a património imaterial da humanidade. O género, prossegue Vlú, é de facto sui generis em termos de estrutura harmónica e melódica, mas o que atribui mais força à Morna, enfatiza, é a sua função social, uma manifestação cultural que ajudou a libertar uma nação.
Das dezenas de vozes entrevistadas, Diva Barros foi a pessoa que mais visivelmente exprimiu a saudade do amigo e compositor. Como diz no seu depoimento, alguém como Manuel d’Novas nunca devia morrer. “Fiquei satisfeita porque este trabalho conseguiu apanhar toda a gente que tem um pedaço do Manel consigo. Na verdade, todos os cabo-verdianos têm algo de Manuel d’Novas dentro de si, mas estou a fazer referência àquelas muitas pessoas que conviveram de perto com esse trovador de gema”, comenta Diva Barros, que descreve o “velho amigo” Manuel d’Novas como o homem que vestiu a cabo-verdianidade na sua plenitude e cuja mensagem há de ser sempre aquela que qualquer artista cabo-verdiano gostaria de exprimir na sua obra.
A estreia do documentário deve acontecer já em Janeiro, depois da sua legendagem. Segundo Neu Lopes, o trabalho será depois apresentado em festivais.
Kim-Zé Brito