Nando Fonseca, presidente do Estrela do Mar: “Ter ido morar em Fonte Filipe ajudou a intensificar a minha paixão pelo Carnaval”

Aos dez anos de idade foi morar com os pais em Fonte Filipe, zona do histórico grupo Estrela do Mar que moldou a sua paixão pelo Carnaval. No entanto, Nando Fonseca, 56 anos, não esconde que tem uma afinidade com o Vindos do Oriente pelo facto de os seus avós terem vivido na rua d’Craca, um dos antigos bastiões do VO. Ao longo do tempo, Nando já desfilou no Estrela do Mar, Cruzeiros do Norte, Samba Tropical, Fonte Filipe em Acção, Olhos Radiosos do Monte Cara, Flores do Mindelo… Só ficou a faltar Monte Sossego, facto que, diz, nada tem a ver com animosidade. Nestes anos, este folião já fez de tudo no Carnaval por amor à arte e à ilha de S. Vicente. Uma entrega árdua, que implica investir tempo e dinheiro. Satisfeito com a evolução do Carnaval d’Soncent e com a parceria entre a CMSV e o artista Dudu Nobre, chama atenção para a protecção da identidade da festa da folia na cidade do Mindelo. Dada a sua paixão pelo Carnaval, Nando promete continuar a dar o seu contributo, mas garante que vai ficar na direcção do Estrela só este mandato.

Por Kim-Zé Brito

Mindel Insite – Nasceu na rua d’Jôn Loreta, perto da Praça Dr. Regala, mas cresceu em Fonte Filipe. Até que ponto esse facto despertou a tua paixão pelo Carnaval?

Fernando Fonseca – Boa parte da minha família era de Fonte Filipe, moramos muito tempo no centro da cidade, mas regressei a Fonte Filipe quando tinha 10 anos. E, como é sabido, esta é uma zona do Carnaval. Os meus avós moravam na zona de Craca, um bastião do Vindos do Oriente nessa época, por isso até hoje tenho muita afinidade com o grupo. O Vindos fez parte da minha primeira infância. Regressando a Fonte Filipe, nesta localidade fui encontrar o Estrela do Mar.

MI – O Estrela torna-se no teu grupo predileto?

FF – Sim, depois que fui para Fonte Filipe criei um forte laço com o Estrela do Mar porque o pessoal da minha casa estava também muito ligado ao grupo. Desfilavam e toda a gente de Fonte Filipe era Estrela.

MI – Fonte Filipe tem o umbigo enterrado no Carnaval d’Soncent?

FF – Sem dúvida, não é a toa que lá tem também um grupo dos mandingas. Aliás, muita gente afirma que o berço dos mandingas é Fonte Filipe, e não Ribeira Bote. Tenho a forte impressão que seja mesmo Fonte Filipe.

MI – O Estrela do Mar, um grupo muito associado à Dona Dulce, esteve em alta, mas depois foi obrigado a afastar-se dos desfiles. Concorda que esse facto terá diminuído a participação popular da zona de Fonte Filipe no Carnaval?

FF – É verdade que essa participação foi esmorecendo, mas também por causa dos custos financeiros. Desfilar nos grupos oficiais exige algum investimento. Estamos a falar de uma zona de gente humilde, mas que tem o Carnaval no sangue. Tenho estado envolvido no Carnaval muito por causa dessa realidade.

MI – Chegou a confidenciar que se envolve de corpo e alma no Carnaval muito por causa de S. Vicente.

FF – São Vicente é um factor de peso. Adoro a minha ilha e, como o Carnaval é das manifestações culturais que enaltecem a força cultural desta ilha, dou todo o meu contributo do coração. Quero e tento fazer algo pela minha ilha. Uma vez que consigo mobilizar muitos foliões porque não ajudar numa área em que me sinto como peixe na água? Há muita gente que diz que foram desfilar influenciadas por mim e que, se eu sair, vão fazer a mesma coisa.

MI – Foi para Fonte Filipe quando tinha 10 anos. Foi com esta idade que começou a desfilar?

FF – Não, nessa altura quem saia eram os meus pais e os meus primos. No entanto, costumava acompanha-los aos ensaios. Como sabe, antigamente todos tínhamos de participar nas “tralhas” (bailes dos grupos) e tudo isso foi moldando a minha relação com o Carnaval.

MI – Costuma fantasiar e sair nos grupos ou o seu papel é mais organizativo?

FF – Saio todos os anos nos desfiles há muto tempo. Já sai em quase todos os grupos: Estrela do Mar, Flores Mindelo, Vindos do Oriente, Samba Tropical, Cruzeiros do Norte, Olhos Radiosos do Monte Cara – grupo nascido na Enapor – Fonte Filipe em Acção. Só falta Monte Sossego.

MI – Porquê nunca desfilou no Montsu?

FF – Isto nada tem a ver com alguma coisa contra o grupo, até porque não faz sentido. Em primeiro lugar tenho sido abordado com antecedência por outros grupos e assumo o compromisso. E, no meu inconsciente, sempre pensei que era o grupo com menos falta de gente. É uma zona grande, com muita gente talentosa e que adora o Carnaval, e sempre tentei dar o meu contributo onde acho que há mais falta de gente e de recurso. É o caso do Flores do Mindelo, um grupo que cheguei a apoiar e de que maneira. Já cheguei a levar 150 pessoas para o Flores do Mindelo e isso mais do que uma vez.

MI – Ou seja, a tua participação no Carnaval vai muito além de uma fantasia e folia no dia do desfile.

FF – Exacto, já saí como mero figurante, mas em muitas ocasiões assumi a responsabilidade por alas. Já fui também presidente de Fonte Filipe em Acção e Olhos Radiosos do Monte Cara… Tenho recebido convites para fazer parte da direcção de um ou outro grupo, mas tenho negado. No entanto, tento sempre dar o meu contributo de outras formas.

“Organizar alas exige muito jogo de cintura”

MI – Explica-me como é organizar uma ala. O que é preciso e o que exige?

FF – Em primeiro lugar tens de ser uma pessoa com disponibilidade e com muito jogo de cintura. Tens de ser flexível, saber respeitar e conversar com as pessoas. Devido a situação financeira vivida em S. Vicente muita gente não tem dinheiro para gastar com o Carnaval. Se o responsável quer ter uma boa ala tem de estar disposto a tirar do seu bolso para ajudar aqueles que menos têm. Ele tem de inventar dinheiro se quer ter uma ala bem composta e vestida. É preciso fazer muita ginástica financeira. Tantas vezes mexemos no orçamento familiar ou vamos pedir ajuda aqui e acolá em nome do grupo?! Isto não está nos meus princípios, mas o Carnaval me obriga. Às vezes tomamos mercadorias fiado e damos aos figurantes para revenderem. É uma ajuda para as roupas. Repare que muita gente tem medo de arriscar, esse risco é normalmente assumido por quem está a organizar a ala.

MI – Já teve de assumir dívidas consideráveis por causa de alas?

FF – Já aconteceu algumas vezes, evito dizer isso porque muita gente pensa que é leviandade. É algo que faço pela cultura da minha ilha. Só quem tem paixão pelo Carnaval é que se mete nessas confusões. Mas, como disse antes, faço isso também por S. Vicente. Se fosse só paixão limitava-me a vestir e desfilar.

MI – Como é que essa dedicação influencia no teu trabalho e na tua família?

FF – É cansativo. Por estes dias, agora que estou na direacção do Estrela do Mar, a organização do desfile está a exigir muito de mim. Só eu sei o que ando a passar. O mandato é de três anos e tenho de ponderar muito sobre o que isso vai representar.

MI – Está a referir-se ao momento actual, mas queria saber como tem sido essa experiência nesses anos.

FF – De uma forma geral é quase igual ao que se passa hoje. É uma dedicação intensa que interfere no teu trabalho, na tua vida familiar e pessoal. É muito difícil. Neste momento tornou-se mais difícil porque o Carnaval chegou a um patamar que exige mais envolvimento da direção dos grupos.

“Sou dos presidentes mais sacrificados”

Nova direcção do Estrela do Mar

MI – Costumam facilitar a tua vida no trabalho por altura do Caraval? Recebe algum tratamento diferenciado, usufrui de um horário mais flexível?

MI – Para falar a verdade isto não acontece directamente. Não usufruo de um horário diferente e nem quero pedir isso. De qualquer modo ninguém me obrigou a envolver-me no Carnaval. Mas sabem na minha empresa do meu empenho em prol da cultura de S. Vicente.

MI – Concorda ou não que, dado ao esforço que os presidentes dos grupos dedicam ao Carnaval, deveria haver uma forma de o Estado obrigar as empresas públicas a facilitar esse trabalho voluntário? Como acontece, por exemplo, com a convocatória de um jogador para a selecção de futebol ou de outra modalidade?

FF – Toca num ponto sensível e pertinente. Penso que quem devia intervir nesse sentido seria a Câmara de S. Vicente, a Ligoc e o ministério da Cultura. Acho chato ir pedir à minha empresa para disponibilizar-me dias para dedicar-me ao Carnaval. Eticamente não é correcto. Agora, a coisa seria diferente se fossem essas entidades a propor essa flexibilidade. Isso seria muito bom. Há pessoas que entendem que eu devia tomar as minhas férias por esta altura. Mas não faço isso porque preciso delas exactamente para descansar-me do Carnaval.

Posso dizer que sou dos presidentes mais sacrificados. Uma coisa é alguém que é reformado ou que trabalha por conta própria outra é o meu caso em que trabalho no aprovisionamento da Enapor.

MI – E por falar da Enapor, é uma empresa com uma enorme sensibilidade pelo Carnaval. Todos os grupos recorrem à sua ajuda.

FF – Realmente não tenho mal a falar da Enapor neste campo. Aliás, o Estrela do Mar tem o estaleiro na Enapor e os nossos contentores estão no seu espaço. Inclusivo usufruímos dos manobradores da empresa para colocar os contentores no parque. Além disso, a Enapor costuma oferecer atrelados e já tenho atrelados nos estaleiros do Estrela do Mar. Não sei até que ponto o Carnaval de S. Vicente poderia atingir o nível actual sem a colaboração da Enapor

Evitar perder a identidade do nosso Carnaval

Eva, Gilson, Romário e Salete, figuras de destaque do EdM para 2020

MI – Além da parte organizativa trabalha na confecção de andores?

FF – Dou o meu contributo em todas as áreas. Isto não quer dizer que estou permanentemente nos estaleiros, mas já passei também por essa área. Já pintei andores, propus ideias e temas, envolvi-me na concepção dos enredos…

MI – Como está a ver a evolução do Carnaval de São Vicente nestes anos?

FF – O Carnaval de S. Vicente está a seguir uma linha própria de evolução, mas temos de ter cuidado para não pensarmos em aplicar regras de outras paragens, como as do desfile do Brasil, e que não se adequam à nossa realidade. Temos de ter consciência das nossas limitações. Sabe disso quem está directamente envolvido na organização dos grupos. Por isso não podemos pensar em seguir as regras dos desfiles do Rio de Janeiro. Há quem diga que andamos a copiar no Brasil, mas desde que estou no Carnaval nunca fui copiar o que havia no Brasil.

MI – Acha que a parceria entre a CMSV e o sambista Dudu Nobre está a trazer melhorias para o nosso Carnaval?

FF – Tem trazido, sem dúvida, mas porque todas as partes estão a tirar proveito disso. Os brasileiros reconhecem que, apesar de sermos uma ilha pequena e limitados financeiramente, fazemos um espectáculo de qualidade. Deslumbram-se com a qualidade do nosso Carnaval, com o talento dos nossos artistas e com a versatilidade da nossa batucada. E ficam mais admirados quando sabem que trabalhamos quase sempre em cima do joelho.

MI – Há pessoas preocupadas com a influência que essa forte aproximação possa ter na identidade do Carnaval de S. Vicente. Estamos perante uma ameaça verdadeira ou essa preocupação não faz sentido?

FF – O Carnaval de S. Vicente adquiriu a sua identidade própria e tem de ser respeitada e resguardada. É fruto de uma longa caminhada. Chegamos onde estamos com o nosso suor, não é fruto dos últimos três ou quatro anos. Há alguns anos que temos galgado degraus, não é por causa do projecto do Dudu Nobre, mas é evidente que essa parceria tem os seus pontos positivos. Aliás, como se costuma dizer, a união faz a força.

Presidente do Estrela do Mar por “acidente”

MI – É o novo presidente do Estrela do Mar, mas confirma que assumiu esse cargo quase que por acidente?

FF – Isto é uma verdade. Já tinha dito que não queria mais ser presidente de um grupo carnavalesco porque sei o que isso implica. Mas, devido a um desencontro no seio dos membros do grupo, acabei por aceitar o desafio dada a uma grande insistência dos meus colegas. Agora tenho de dar o meu máximo e levar um grande desfile para as ruas de morada.

MI – Afirmou que o objectivo do Estrela do Mar é ganhar e lançou um aviso aos outros grupos. Há quem diga que devia ter um pouco mais de humildade porque essa mensagem “cheirou” a arrogância.

FF – Quem me conhece sabe que não sou arrogante. Eu não afirmei categoricamente que vamos ganhar, mas sim que estamos a lutar para vencer e que, se os nossos concorrentes não tiverem atenção, vamos conquistar o título. Isto porque temos um projecto ambicioso, temos gente competente e estamos empenhados. Os outros grupos deviam até ficar contente porque isso significa que queremos aumentar a fasquia da qualidade.

MI – Este ano vamos ter cinco grupos. Acha que isso vai criar algum constrangimento logístico, são grupos a mais ou nem por isso?

FF – Acho que as coisas funcionam quando estão bem planeadas. Basta haver uma estratégia bem montada entre a Câmara, a Ligoc e os grupos que as coisas funcionam. Por mais que digam que cinco são demais, devo lembrar que já tivemos concursos com mais grupos. As pessoas alegam agora que os grupos são maiores, concordo, mas as coisas irão funcionar se for estabelecido um bom plano.

MI – Fala-se agora na possibilidade de desfiles à noite. Qual a posição do Estrela do Mar?

FF – Há uma certa divergência sobre esta matéria dentro do grupo, mas sinto que a maioria defende o desfile diurno. Pessoalmente prefiro de dia.

MI – Assim que terminar o teu mandato no Estrela do Mar pretende reformar-se da organização do Carnaval?

FF – Vou ficar na direcção do Estrela apenas este mandato, isto garanto. E sei que vou ter muito trabalho durante estes três anos. Agora, enquanto houver pessoas que acham que possa ser útil, vou continuar a dar o meu contributo aos grupos, mas não na direcção.

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