São Vicente colocou-se uma vez mais à frente do espelho ontem à noite, no ensaio geral antes da estreia de “A Cidade do Café”, a segunda peça da trilogia Crónicas do Mindelo, da autoria de Rocca Vera-Cruz. Com encenação de João Branco, o espectáculo tem apresentações reservadas para sexta, sábado e domingo, todas com lotação esgotada. O ensaio foi acompanhado por jornalistas e por um grupo restrito de convidados, que saíram do Centro Cultural do Mindelo de alma lavada e com a vibe nas alturas.
Durante mais de uma hora, o público fez um mergulho profundo nas vivências de Soncent, com tiradas humorísticas singulares, permeadas de palavrões, trejeitos e figuras ímpares, numa interpretação sublime do “time de sonho” do Grupo de Teatro do Centro Cultural do Mindelo (GTCCM): Ranck Gonçalves, Romilda Silva, Fidélia Fonseca, Janaína Alves, Nuno Delgado, Zenaida Medina, Kristovan Morais, Nick Pires e Lisa Reis. Estes actores deram vida a nove personagens que podem ser encontrados em qualquer esquina do Mindelo: Ney d’ Concha, o ex-emigrante reformado que regressa do mundo dos mortos para dar vida ao candidato e futuro presidente da Câmara Municipal enredado em negociatas, promessas eleitorais descabidas mas, principalmente, um expert em “dar café”.
Concha, a esposa, tem como única ambição ser a primeira dama, a prostituta brasileira virou empresária e dona de bordel, a novinha “depena” o português que veio fazer o marketing politico do candidato autárquico com o intuito apenas de ganhar uma “massas”, alguns terrenos e outras benesses. Tem também o Txupirix, personagem arco-íris, a dona do bar, etc. Se não bastasse, Lisa Reis faz uma interpretação de duas músicas de Manuel d’ Novas que receberam uma roupagem nova pelas mãos do filho, Neo. Também não podia faltar o Carnaval de São Vicente, com a bateria Ritmo do Norte do grupo Cruzeiros do Norte, e um tema original de João Carlos Silva (Jotacê). Um forte aplauso!!!
Em declarações à imprensa no término do ensaio, o encenador João Branco explicou que esta segunda parte da trilogia era para ser estreada em 2020, mas teve de ser adiada por causa da pandemia da Covid-19 e também pela própria natureza e o espírito desta obra, que é de celebração. “Passamos dois anos muito difíceis por causa da pandemia e, quando pensávamos que estávamos livres, surge agora esta guerra na Europa que obviamente tem repercussões também em Cabo Verde. E mesmo que não tivesse é muito trágico o que está a acontecer. Por isso, é importante este segundo episódio desta trilogia, para tentar trazer de novo esta alegria, que é muito característica do povo do Mindelo”.
Sobre o espetáculo em si, apesar do sugestivo título “A Cidade do Café”, este encenador deixa claro que a peça tem como protagonistas a política e o Carnaval de S. Vicente, que são os dois momentos em que a narrativa ganha mais força. “Acabamos de passar por um ciclo político com três eleições e ainda estão vivos na memória de todos os podres e as estratégias de campanha, que são conhecidos por todas as classes políticas e por toda a gente. É um retrato que acaba por ser uma forma de nós nos vermos ao espelho e colocarmos os dedos na ferida de uma forma alegre e descontraída”, assegura.
Todos os personagens transitam de Crônicas do Mindelo para A Cidade do Café e Branco afirma que foi uma das razões para se avançar para uma trilogia. É que, diz, quando Rocca iniciou a escrita a ideia era fazer um espetáculo de celebração dos 25 anos do GTCPM, mas a empatia do público com as personagens fez com que dessem continuidade ao trabalho. “Tínhamos de saber o que iria acontecer na biografia destes personagens depois de Crónicas do Mindelo. Tanto é assim que o protagonista morre no final do espetáculo e aparece agora vivo e cheio de saúde. Acho que esta é uma das mais-valias porque o público conhece os personagens e volta a reencontrá-los neste espetáculo.”
Fórmula de sucesso
Uma vez mais, o encenador mistura música ao vivo e teatro, uma fórmula de sucesso que o grupo tem vindo a repetir, citando a título de exemplo o espetáculo “O Cheiro dos Velhos”, em que Lisa Reis também cantava ao vivo. Ainda mais para trás, na década de 1990, o Luis Morais também tocou na versão de “Virgens Loucas”. Para Branco, isto reflecte a importância da música no dia-a-dia, desde o nascimento no “Guarda Cabeça” até a morte, a acompanhar o percurso até o cemitério.
“Aqui tivemos a sorte de ter o Neo a musicar e fazer os arranjos das duas coladeiras que seleccionamos do compositor Manuel d’ Novas, muitíssimo bem interpretadas por Lisa Reis. Neste sentido, o espetáculo foi muito feliz porque as versões ficaram lindas. Tivemos ainda uma música original, intitulada A Cidade do Café, composto por JC, que é também uma figura importante do nosso Carnaval e tinha de estar presente”, pontua Branco, que dedica este espetáculo a Dona Lili Freitas, recentemente falecida, e de uma maneira geral aos homens, mulheres e crianças que trabalham no Carnaval de São Vicente e que fazem deste evento a maior festa cultural e popular de Cabo Verde.
Satisfação. Era este também o sentimento do protagonista Ney d’ Concha, para quem a actuação correu bem, embora estejam ainda a limar pequenas arestas antes da estreia. “Correu muito bem este ensaio geral. Havia muita energia. E, para mim, sempre é um prazer interpretar Ney d’ Concha porque é uma realidade de S. Vicente e tudo o que seja desta ilha dá-me uma enorme satisfação no palco. Ney d’ Concha é uma montagem de várias personagens”, revela Rank Gonçalves, que admite treinar em casa, em frente ao espelho, os trejeitos e representação do seu personagem.
O prazer de interpretar este personagem, afirma, não é apenas durante o espetáculo. Começa ainda nos ensaios porque dificilmente conseguem segurar o riso. “Rimos muito do nosso personagem e dos nossos colegas. Aqui sentimos a empatia com o público e nos dá muito gozo, porque não há nada melhor do que o bom teatro. Vemos o público a sentir e a interagir com o grupo. É algo que apreciamos. Temos sempre o cuidado de nos apoiar e chamar a atenção para tudo correr bem.”
Nesta peça em particular, Rank Gonçalves admite que a vida política em São Vicente e em Cabo Verde no geral acaba por ser o tempero porque mostra a realidade, sobretudo das campanhas eleitorais e que foram retratadas neste espetáculo. O actor espera agora levar este teatro para fora de São Vicente para permitir que outras ilhas consigam ver esta encenação porque, diz, é um trabalho que merece ser visto.
Foto: Queila Fernandes