Estreia esta segunda-feira no Mindelact a peça teatral “A Peste Branca”, a 67ª produção do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo. Trata-se de uma adaptação livre do romance “Ensaio sobre a Lucidez” de José Saramago feita pelo premiado dramaturgo cabo-verdiano Caplan Neves, que promete inquietar o público, tendo em conta que induz a uma reflexão sobre o sistema democrático, mas sem resvalar para o drama. No elenco de dez actores está Manuel Estevão, que este ano comemora 50 anos de palco em Cabo Verde e agora Portugal.
Coube aliás ao Manuel Estevão, que está emigrado em Portugal há dez anos e à quem João Branco fez questão de dedicar esta peça, fazer a apresentação do espetáculo. “Este é um espetáculo de um cunho muito especial, primeiro por se tratar do autor, José Saramago, depois por ser uma adaptação muito vem feita. Gosto imenso da forma como o Caplan Neves escreve e faz as adaptações. Neste caso, é uma obra que tem um cunho politico. Critica politicamente a sociedade e a politica, mesmo ao estilo de Saramago. Mas tem um enredo muito divertido e a encenação fez que com que se tornasse mais leve”, explica Estevão, que diz, enquanto actor, sentir-se inserido no elenco e na história porque há pormenores com os quais se identifica dentro da sociedade em que nasceu e cresceu.
Relativamente aos 50 anos do jogo do palco, este deixa claro que não consegue explicar como conseguiu chegar até ao presente a fazer teatro. “Fui fazendo. Como disse o Peter Brook, um dos ícones do teatro, é preciso coragem para experimentar e coragem para continuar. No meu caso, houve no inicio uma coragem e uma curiosidade para iniciar. Tinha 10 anos quando subi ao palco pela primeira vez e tinha muita curiosidade. A agora é coragem para continuar a estar em palco. Agradeço do fundo do coração o publico cabo-verdiano e a todos que fizeram comigo este percurso”, retribuiu.
“A Peste Branca” tem 1h25 de duração e coloca em palco dez actores, dos quais cinco no elenco e os restantes em participação especial, com performances pontuais. Segundo o encenador João Branco, trata-se de um espetáculo provocador, no sentido que induz à uma reflexão sobre o próprio sistema democrático, mais precisamente de que forma este pode ser colocado em causa pelo resultado de uma eleição. “A Peste Branca relata a história de uma grande cidade de um país organizado em ilhas, um arquipélago qualquer, em que 83% da população decide votar em branco. Isto provoca um colapso do sistema porque quem vence as eleições não está legitimado para assumir o poder porque uma grande fatia dos eleitores decidiram votar em branco, que é um voto politico. Ou seja, declara que nenhuma das opções apresentadas interessava a quem foi votar”, relata.
Mas, se a situação já era complicada, piora quando o estado decide repetir o pleito, apenas nesta cidade. É que, diz Branco, o resultado agrava-se com o aumento da percentagem de votos em branco e, como acontece quando a democracia se sente acossada, segue-se o caminho da repressão. “Decide-se criar uma repressão politica para tentar entender o que aconteceu, utilizando meios questionáveis, principalmente quando se está inserido no meio democrático”, pontua o encenador, para quem esta é a obra mais politica de Saramago, sendo quase uma continuação do livro Ensaio sobre a Cegueira, tendo em conta que alguns personagens transitam de uma obra para outra.
“Acredito que as pessoas vão sair do espetáculo reflectindo sobre a nossa condição enquanto país democrático e sobre que legitimidade é que os governos, os governantes e os políticos têm quando a maioria da população decide manifestar-se sem ser favoravelmente a nenhuma das opções a disposição para votar. É muito interessante e vai provocar algo que gosto muito que aconteça depois dos espetáculos, que as pessoas saem a discutir, debater e conversar sobre aqui que viram.”
Outras estóreas
Ainda hoje, no palco 2, na Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo, será apresentado a peça “Amêsa ou a canção do desespero”, do Grupo Elinga Teatro de Angola. Na antecipação, o encenador José Pena Abrantes destacou o privilegio do seu grupo estar mais uma fez no Mindelact, naquela que é a sua sétima participação neste festival. “Tive o privilégio de estar aqui na 3ª edição do Mindelact. Tanto o grupo de teatro do CCPM com o meu grupo foram os primeiros e únicos de dois países africanos de língua portuguesa a fazer uma co-produção. Acho que é realmente um privilegio”, enfatizou, realçando que nos 34 anos de existência do Elinga, o grupo conseguiu realizar apenas quatro festivais, o que torna ainda mais extraordinário o Mindelact conseguir manter a regularidade desde 1996.
Para esta edição, segundo Mena Abrantes, o grupo traz uma peça da sua autoria escrita há 30 anos, mum momento especial da vida politica em Angola, que era o fim da primeira fase da guerra e o inicio da vida democrática em Angola com a realização das primeiras eleições, mas que continua actual. “Estávamos em um período de transição em que havia um sentimento de esperança por uma parte da população e, por outro lado, um grande pessimismo em relação ao que iria suceder. Os pessimistas de alguma forma venceram porque depois das primeiras eleições democráticas de 1992 a guerra recomeçou e só acabou 10 anos depois. É uma obra que poderia ser considerada datada mas, estranhamente, mantém actual. Não é uma propaganda politica, mas sim uma obra em que a politica é abordada pelo viés poético e pode facilmente agradar, até porque é curta.”
Outra peça que promete surpreender é “Transfiguration” de Olivier de Sagazan, que propõe uma viagem ao interior do coração e garante ser perceptível para todos. Sobre este artista, João Branco afirmou que é uma honra Cabo Verde receber este artista, atualmente estudado nas universidades e que já participou em festivais em todo o mundo, que vai marcar a história do Mindelact. Esta é uma peça universal em que Olivier de Sagazan veste diversas faces e obriga o público a sair da sua zona de conforto. “Para mim é uma honra estar aqui. Nasci no Congo-Brazaville e a minha performance é inspirada no pensamento africano, particularmente na África Negra. Ela tem 20 anos e já foi apresentado mais de 350 por todo o mundo. É segundo vez que é apresentado em África, em Cabo Verde. Apresentar esta performance em África é, de alguma forma, retribuir a inspiração que recebi”.
Já no Ciclo Internacional de Contadores de Estóreas, que arranca hoje, segunda-feira, Zenaida Alfama explica que, após uma ausência de dois anos devido a pandemia, retoma em força nas escolas no período de manhã e, no CCM, à tarde, com Rodas de Contação de Estóreas. “Iremos ter três contadores de estórias de São Vicente, que irão participar na Contação no CCM, às 16 horas. Durante a semana, tiremos todos os dias, às 10h30, para as escolas dos arredores da cidade do Mindelo, sobretudo as mais distantes. Teremos assim Mindelact a ir para as escolas e estas a virem para o festival”, indica.
O Ciclo Internacional de Contadores de Estóreas conta com a participação de contadores de Portugal (Jorge Serafim), Brasil (Clara Haddad) e Cabo Verde (Irina Fonseca, Paulo Chantre e Zenaida Alfama).