O grupo Cruzeiros do Norte apresentou na noite de ontem o seu enredo para o Carnaval 2026 intitulado “História dourada com pedras negras”, que coloca São Vicente no centro do mundo e mostra que o desenvolvimento de Cabo Verde iniciou com a vinda dos barcos carvoeiros ingleses ao país. Estes navios, segundo o carnavalesco Fernando “Nóia” Morais, trouxeram conhecimento e também moldaram de forma marcante a personalidade dos mindelenses. Foram apresentados ainda os reinados, os passistas, o casal de mestre-sala e porta-bandeira e rainha de bateria, este ano a cargo de Ilse Alves, que substitui Andrea “Brodjinha” Gomes.
Foram várias horas de suspense, antes do anúncio do enredo. Mas, à medida que o tempo foi passando surgiam sinais. Dondy Évora e Fatinha do Rosário usavam expressões em diversas línguas, sobretudo o inglês, bem à moda dos mindelenses que gostam de exibir os seus “dotes” linguísticos. A noite começou com a entoação do hino do Cruzeiros, seguido de uma exibição da Bateria Ritmo do Norte, figuras de destaques, passistas e musas, música com Edson Oliveira e Ivan Medina, perguntas e respostas.
Depois foram revelados os reis Alessandro Monteiro e Ivan Graça e as rainhas Dorinda Morais e Eloisa Matias. O grupo repete a parceria Laurinda Santos e “Kady” Fernandes como casal de porta-bandeira e mestre-sala e eleva Ilse Alves, que nos últimos anos desfilou como figura de destaque, à rainha de bateria. Houve ainda um momento de dança com alunos da Escola Jorge Barbosa do grupo Ensinarte. O momento mais esperado da noite, no entanto, era a apresentação do enredo que, mais uma vez, foi encenado por elementos do grupo, com apoio de imagens da época do carvão desde a Inglaterra até chegar a S. Vicente, com a presença e interação dos marinheiros nos bares e cabarés na ilha, prostituição, entre outros.
Ao Mindelinsite, o carnavalesco Fernando “Nóia” Morais explicou que, em 2025, o grupo apostou em um enredo sobre Cabo Verde, que garantiu o título de campeão ao Cruzeiros. Na onda desta vitória, a direção desta agremiação decidiu, por unanimidade, que este ano iria focar-se em São Vicente. “Decidimos mergulhar na história da ilha, mais precisamente no tempo em que os navios aportavam no Porto Grande carregados de carvão. Este tempo mudou S. Vicente e moldou a personalidade do mindelense. Os barcos de carvão na baía proporcionaram o surgimentos de muitos negócios na ilha, nomeadamente ship chandler, cicerone e também de prostituição. Mudaram a sociedade mindelense e se transformaram em tábua de salvação de Cabo Verde, mas isso é algo que ninguém se fala atualmente.”
Noya alega que carvão inglês deixou marcas em S. Vicente a nível do desporto – futebol, cricket, golfe e tênis -, mas também a fleuma, a ginga e a basofaria porque é conhecido o mindelense. “Se os ingleses não tivessem tido a feliz ideia de negociar com os portugueses e montar nesta ilha um consulado instituído pela rainha, São Vicente não era o que é. Vemos esta presença a nível da arquitetura, mais precisamente na forma como a ilha é estruturada. Marquês de Pombal fez o traçado da cidade, mas este só saiu do papel após o interesse demonstrado pelos ingleses. Eram exigentes e queriam tudo bem feito e, porque davam à Coroa Portuguesa muito dinheiro, esta viu-se obrigada a respeitar o acordo comercial.”
Para alegria do carnavalesco, o enredo acabou por casar com o momento atual de S. Vicente, que precisa se reerguer. “Foi uma feliz coincidência. Como se diz, Deus escreve certo por linhas tortas. Por isso decidimos investir pesado e, por nenhuma razão, iríamos abandonar S. Vicente neste momento. Os verdadeiros mindelenses não abandonam a sua ilha no momento em que ela mais precisa e, principalmente, numa altura em que o nosso Carnaval atingiu um patamar elevado. Com sacrifício estamos aqui. Tivemos um prejuízo enorme devido às fortes chuvas de agosto, perdemos muitos instrumentos e fomos roubados, voltamos a registar uma perda brutal no incêndio recente, mas vamos safando.”
No seu caso, Noya diz que perdeu duas máquinas de solda, mas felizmente tem mais quatro. Também perderam peças de esculturas que já estavam a trabalhar. Mesmo assim, promete um desfile grandioso. “Estamos praticamente a começar do zero. Mas estamos a investir pesado. O nosso projecto é enorme, superior ao apresentado em 2025. Está orçado em dez mil contos. E, como os outros grupos não vão desfilar, estamos a contar com um reforço do financiamento para os que vão sair. O Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas prometeu que os grupos serão ressarcidos dos prejuízos que tiveram. Enviamos os orçamentos e estamos a aguardar. Entendemos que S. Vicente precisa do Carnaval.”
Já presidente Jailson Juff garantiu que o grupo nunca colocou em causa a sua participação no Carnaval 2026. Por isso, disse não compreender a posição dos outros quatro grupos oficiais, que já tinham tornado público a intenção de desfile oficial de virem agora afirmar que não aceitam a competição entre o Cruzeiros do Norte e o Flores do Mindelo. “Temos apoio da Câmara de S. Vicente e do MCIC e da Liga Independente dos Grupos Oficiais do Carnaval (Ligoc-SV), particularmente do seu presidente. Os quatro grupos alegam que foi o Conselho Deliberativo que decidiu pela não realização da competição, mas este órgão é formado por todos os grupos e nós não estivemos presentes na reunião. Entendemos que não podem interferir nas decisões dos dois grupos que aceitaram defender S. Vicente”, declarou.
Para este responsável, o Carnaval este ano é mais do que cultura ou uma simples festa. É uma oportunidade para a ilha, tendo em conta o número elevado de turistas que vão estar em S. Vicente nessa altura. Vai ajudar a ilha e as suas gentes que sofreram com as chuvas, por isso não entendemos e não aceitamos não fazer o Carnaval. “É algo que gostamos e vai ser útil para a população de S. Vicente. Não podemos cortar o Carnaval, que vai trazer recursos para a nossa ilha. Estamos tristes com a decisão dos outros grupos.”
Sobre o desfile, Jailson Juff garante que o Cruzeiros vai apresentar com quatro carros alegóricos, dois reis, duas rainhas, porta-bandeira e mestre-sala, rainha de bateria e com uma massa de cerca de 2.000 figurantes, tendo em conta a enorme procura que o grupo está a registar. “Estamos a receber muitos pedidos de pessoas, inclusive trabalhadores dos outros grupos, inclusive já não temos mais condições de atender a demanda. Acredito que quando os quatros grupos decidiram não participar do desfile não pensaram nos seus colaboradores, que estão há muitos anos a trabalhar com eles”, sublinha.
Quanto ao orçamento, Juff confirma que atinge pela primeira vez os 10 mil contos para poder apresentar um trabalho ainda com mais qualidade. “O nosso orçamento nunca chegou aos sete mil contos. Muitas pessoas nos questionam sobre a qualidade do trabalho que temos vindo a apresentar com orçamentos pequenos. Não vamos contar os nossos segredos. Sabemos que outros grupos têm atingido valores entre 15 a 20 mil contos, mas mesmo com o desfile vencedor de 2025 não chegamos a sete mil contos”.
Entende por isso que, independentemente da posição dos demais grupos, o Carnaval de S. Vicente tem de ter concurso. Aliás, lembrou que sempre em condições adversas, são o Cruzeiros do Norte e o Flores do Mindelo que têm assegurado os desfiles oficiais na ilha do Porto Grande.
