O médico cabo-verdiano João Soares, detentor de dois mestrados e atualmente a concluir um doutoramento em Saúde Publica na Medicina Tropical, defende que o aumento da incidência do cancro em Cabo Vede está ligado as questões nutricionais, mais precisamente ao uso de herbicidas na agricultura. Na segunda parte desta entrevista, este cientista fala dos diferentes tipos de cancros diagnosticados no país e diz que o sistema de saúde está distorcido porque os médicos que trabalham no público e têm contratos com privados, com tendencia para priorizar este último.
Por: Constança de Pina
Mindelinsite: Relacionou o aumento de diagnósticos de cancro em Cabo Verde com comportamento e nutrição. Explica-nos melhor o que quer dizer com isso?
João Soares: O cancro, do meu ponto de vista, está intimamente ligada às questões nutricionais, mas também de comportamento. Atualmente usa-se muitos herbicidas na agricultura. Pensávamos, erradamente, que aqui no país estávamos a consumir produtos biológicos. Mas os nossos agricultores estão a exagerar no uso de herbicidas e pesticidas. Esta é uma realidade. Vemos isso, nas publicações da Direção Nacional de Saúde. Temos estudos epidemiológicos sobre problemas de cancro.
MI: Pode apontar exemplos concretos?
JS: Com certeza. Sabemos que a mulher cabo-verdiana está a ser devastada na questão do cancro de mama e do útero. Há um tipo de infeção viral, que é o vírus de Vírus do Papiloma Humano (HPV), que provoca cancro do colo do útero. Felizmente que, em Cabo Verde, as autoridades tiveram a sagacidade de começar a vacinar as meninas a partir dos 10 anos, por forma a reduzir este tipo de cancro.
No caso do cancro de mama, temos muitos casos e o diagnostico tem sido tardio, sobretudo para as pessoas que vivem no meio rural. Conheço o drama das gentes de S. Nicolau, decorrentes dos problemas de transportes, de falta de médicos especialistas, por exemplo. Mas quem diz S. Nicolau, diz Fogo ou demais ilhas periféricas. A maior parte dos médicos colocados nestas ilhas são estagiários e, quando adquirem algum conhecimento, são transferidos. Portanto, não há um aconchego de conhecimento. Depois, como não há especialistas, raramente estes vão visitar estas ilhas periféricas. Por outro lado, para uma pessoa ser diagnosticada ou pelo menos ter um alerta em S. Nicolau ou outra ilha periférica e depois para vir à S. Vicente é custoso para as famílias.
MI –Apontou uma causa para o aumento da incidência do cancro em Cabo Verde. Há outras causas?
JS – Na verdade, desconhecemos a maior parte das causas de cancro. Não sabemos o que leva uma célula do nosso corpo a transformar, crescer e multiplicar de forma desordenada, de tal forma que vá provocar danos irreparáveis até a morte do próprio indivíduo. Mas, neste momento, temos cientistas que estão a estudar nos laboratórios, a tentar descobrir exatamente o que provoca esta alteração. E também porque uma célula cancerosa sai do seu local, por exemplo de um pulmão, e vai atacar o fígado, o rim ou o cérebro. Porque esta célula alterada não fica exclusivamente onde ocorreu a mutação? Se ficasse num único local era fácil o tratamento. Mas quando provoca metástase, sobretudo quando o diagnostico é tardio, é mais complicado.
MI –Voltando a questão das causas …
JS – O que posso dizer é que o cancro da mama está para a mulher como o do próstata está para o homem. Para além disso, temos o do pulmão que afeta grandemente os fumadores. Há uma relação causal directa entre as substancias tóxicas do tabaco com o cancro do pulmão. Como também temos uma relação directa entre o HPV – Vírus da Papiloma com o colo do útero. Mas os demais não sabemos as suas origens. Geralmente o cancro do osso é uma consequência da metástase, por exemplo, do cancro do pâncreas. Sabemos também que este tipo de cancro é muito rápido e doloroso. É um cancro debilitante e migra ou dissemina para o fígado, para os ossos, para o cérebro e para outras artes do corpo. O cancro da tiroide também é demolidor. Metastiza de forma rápida. Temos também o cancro genuinamente ósseo, mas, como disse, geralmente, os ossos são afetados de forma segundaria.
MI – Como precaver ou prevenir, nestes casos?
JS – Neste momento temos técnicas diagnosticas que podem detectar atempadamente o cancro. Por exemplo, através de mamografias, quando bem feita e por um técnico radiologista. Este exame permite acompanhar o surgimento e a evolução da doença, principalmente nos casos em que uma mulher tiver um historial de cancro na família. Temos de manter uma vigilância e a própria mulher pode e deve fazer o toque para tentar perceber qualquer alteração para procurar um medico. No caso do cancro de próstata, o diagnostico antes era uma sentença de morte. Hoje sabemos que é evolutivo. É um cancro que demora muitos anos, então temos dois exames, um de sangue e outro de apalpação para o diagnosticar. Se for diagnosticado atempadamente, é possível ser tratado. Imagina uma pessoa de 60 anos diagnosticado com cancro de próstata. Se não for diagnosticado, pode morrer após cinco anos. No entanto, se for diagnosticado e tratado pode ultrapassar s 100 anos. O mesmo acontece com uma mulher. Se tiver um cancro de mama ou de útero diagnosticado e tratado atempadamente pode recuperar. Antes estes cancros eram diagnosticados muito mais tarde, e terminavam em morte. Hoje são diagnosticados cada vez mais cedo. São todas estas situações que nos levam a pensar que há também fatores ambientais, designadamente as toxinas, que possivelmente podem contribuir para o favorecimento deste aparecimento de cancros mais cedo e mais ferozes.
MI- Um cancro que se fala muito pouco é o do intestino grosso. Porque?
JS – É verdade. Mesmo entre os médicos existe um mito ou preconceito de que o cancro do intestino grosso é muito raro. Mas não é verdade. É preciso estar atento porque é o terceiro ou quarto mais diagnosticados, depois do cancro da próstata, da mama e do pulmão. O cancro do intestino grosso afeta igualmente homens e mulheres. Neste caso, faz-se um exame de nome colonoscopia em que um tubo que é inserido debaixo para cima, ou seja a partir do reto,para averiguar, através de uma técnica luminosa, se encontra algum pólipo suspeito. Se encontrar, este é cortado. Faz-se depois uma biopsia para confirmar o diagnostico e iniciar o tratamento. O cancro do intestino grosso é demolidor e é causado principalmente por alimentos errados que consumimos, caso das toxinas, que provocam e fomentam o seu aparecimento.
MI – Enquanto médico, como avalia o estado da saúde em Cabo Verde, em termos de tratamentos, tendo em conta que há mais e melhores equipamentos, fármacos novos e muitas clínicas, que permitem ter mais opções atualmente?
JS – Temos e não temos muitas opções, apesar das muitas clínicas porque as pessoas não têm recursos. O sistema de saúde está distorcido porque os médicos que trabalham no público, também têm contratos com privados. Os médicos do serviço publico não dão a devida atenção as pessoas no publico porque o seu objectivo é desviá-las a para fazer não só diagnósticos como consultas no privado. Acabam por beneficiar porque, por exemplo, quando pedem um TAC, que custa 25 mil escudos, recebem uma percentagem. Não sei precisar de quanto, mas foi-me confirmado por alguns médicos que recebem uma percentagem por cada exame que receitam aos pacientes. Idem com uma ressonância magnética, que custa 45 mil escudos. Portanto, há uma certa aldrabice por parte de alguns profissionais de saúde, que precisa ser controlada pelo Ministério da Saude e pela agência reguladora. Do meu ponto de vista, um médico devia dar 100% no público. Não pode, por exemplo, trabalhar apenas 3/4 horas. É injusto quando na Função Pública os trabalhadores cumprem 8 horas diárias. Todos têm os mesmos direitos. E os médicos e enfermeiros são bem pagos, se formos comparar com outras classes profissionais, como por exemplo com um pedreiro, carpinteiro ou outro que trabalha de sol a sol. É injusto ter esta desigualdade. É intolerável e não é honesto.
MI – Existem mais factores que acabam por também penalizar o utente?
– Certo. Sei que há outros fatores. Por exemplo, neste momento as farmácias nacionais estão sem medicamentos. A pergunta que se impõe é porque as farmácias, ou melhor a Emprofac, não está a importar medicamentos? Qual é a mão escondida que está a fomentar a introdução de privados, ou então de farmácias privadas, sendo que para isso precisam desmantelar aquilo que é o bem público, que é a Agencia Farmacêutica Nacional e que era um orgulho dos cabo-verdianos. A Emprofac está a ser desmantelada para poder dar azo a introdução de privados? Não se sabe. Esta é uma pergunta que faço. Mas é certo que falta remédios no mercado. Em termos de acesso a cuidados de saude, uma pessoa que vive em uma das ilhas periféricas para conseguirem sair e viajar para S. Vicente ou Santiago, para fazer tratamento não têm capacidade. Muitas vezes prefere morrer. Ou alimenta os filhos e vão os filhos escola, ou sacrifica e vem fazer uma consulta. Temos profissionais de saude em número razoável. Por cada 10 mil habitantes temos números que a OMS diz que são suficientes. O problema é a honestidade. Têm de trabalhar onde devem trabalhar. Tem de escolher, ou trabalham no privado ou no público. Agora fazer as duas coisas não podem de forma igual e com qualidade.