Com o tema “Regionalização” em stanby, após o Governo, através do Ministro dos Assuntos Parlamentares, ter pedido o cancelamento da votação na especialidade da lei na sessão plenária de Abril, devido ao chumbo dos artigos 6 e 7, importa publicar, com a devida vénia, um artigo assinado por Humberto Cardoso e dado a estampa no Jornal Azágua, em Setembro de 1990. É perceptível que as partes não estão minimamente interessadas na Regionalização pelo que, este artigo, pode ser um “bom instrumento” para originar uma conversa séria. Este texto foi escrito há 30 anos, mas, com ligeiras adaptações, continua muito actual. Destaque ainda para o facto de, neste altura, o agora director do jornal Expresso das Ilhas, levantar o véu sobre a importância da autonomia das ilhas.
“Cabo Verde Assunção da insularidade”
– Por Humberto Cardoso –
Cabo Verde a, encontra-se na encruzilhada e o seu devir histórico depende muito da análise que o seu povo faça do seu passado não só recente como longínquo.
Cabo Verde, um pequeno país de dez ilhas com uma população de 350 mil habitantes, tem comunidades espalhadas por vários países cujos membros totalizam quase o dobro da população residente. Uma relação afectiva estreita liga o país à sua diáspora à qual continua ainda a alimentar com um fluxo mais ou menos constante.
As ilhas de Cabo Verde foram descobertas pelos portugueses que as povoaram com gente trazida da costa ocidental africana e europeus da metrópole. Ilhas de poucos recursos naturais e fraca capacidade agrícola, sempre foram destinadas a abrirem-se para o mundo seja em termos de comércio seja enviando os seus filhos para outras terras. O encontro de culturas mais a luta pela sobrevivência nas ilhas, cada uma diferente das outras, originou o aparecimento de um povo crioulo com identidade cultural e linguística própria, assertivo, lutador, solidário e avesso à opressão. Um povo que cedo reconheceu que a sua sobrevivência estava ligada ao domínio do meio ambiente hostil, daí a sua capacidade de trabalho ilustrada na conquista de terras de cultivo em lugares inóspitos e a procura incessante de água, a sua capacidade de aprendizagem e o seu desejo de se educar.
Nove ilha cada uma com a sua ambiência física, os seus recursos e a sua importância relativa no todo, flutuando ao sabor das necessidades do comércio na região. As crises, as revoltas, a fome e a morte, a emigração e a esperança sempre renovada no tempo das águas, tudo isso misturou-se no caldeirão de onde brotou o caboverdeano, mas um caboverdeano com nove faces, pobre de recursos, mas rico nas múltiplas dimensões das suas noves almas.
Uma riqueza dada a conhecer ao mundo pelo movimento literário Claridade e sentida através da morna, da coladeira e do funaná. Realmente, a literatura escrita e oral, a música, o artesanato, os costumes e a língua, revelam uma alma caboverdeana com um colorido derivado da idiossincrasia própria do homem de cada ilha.
A Nação Caboverdiana nasceu e cresceu no império português resistindo a todas as tentativas do seu esmagamento cultural e linguístico e, desde cedo, foi tentado a tomar o controle da sua governação. Cedo apareceram padres, funcionários, proprietários caboverdanos. Daí que sempre houvesse situações de conflito entre a população local e os governantes portugueses. Daí que, em reação, o ordenamento do território caboverdeano em termos administrativos imposto traduzisse a preocupação de controle estrito a ser exercido a partir de um centro, a capital.
Na realidade, o ordenamento do país foi copiado do de Portugal de onde se retirou a experiência do sistema municipal. O País ficou dividido em concelhos e freguesia deixando assim de ser pensado como um conjunto de ilhas. Isso foi acentuado com o advento do fascismo em Portugal em 1933m que trouxe um controlo mais estrito eliminando a relativa autonomia anteriormente gozada a nível municipal.
A estratégia de controle e subjugação do país subjugação do país consubstanciava-se nesse ordenamento que ignorava o caracter insular do país, e mais, as características socioeconómicas e culturais especificadas de cada ilha. É então que, às flutuações do comércio na região, vieram somar-se os imperativos do governo colonial (ultracentralização do poder na capital, estacionamento de tropas em S. Vicente e Sal) como factores de desequilíbrio provocando fluxos migratórios para essas ilhas e a consequente marginalização das outras.
Com a independência nacional, conquistada em todas e em cada ilha, reacendeu-se a esperança com a promessa de desenvolvimento harmonioso. Esperança de pouca dura pois o novo Estado, ao implantar a sua administração, não questionou a filosofia de base da administração anterior e assistiu-se então ao espectáculo de aparecimento de estruturas administrativas – os ministérios – superimpostas aos antigos serviços administrativos da colónia, servindo-se dos mesmos métodos, das mesmas pessoas e do mesmo código – o estatuto do funcionalismo ultramarino. O novo Estado já era velho no acto de nascimento e, por isso, reproduziu-se e exacerbou ao extremo as contradições criadas pela administração colonial. O poder municipal foi destruído em todas as ilhas com a instituição do cargo de delegado de governo, e o poder do estado foi fraccionado ao se fazer os representantes dos ministérios responsáveis directamente perante os superiores na capital e não através do delegado de governo, inviabilizando assim qualquer possibilidade de concertação no concelho.
A infusão massiva de dinheiro da ajuda externa permitiu o crescimento de uma administração pública parasitária, ineficaz, burocratizada e com ela o crescimento irracional da capital, desencadeando a migração de milhares de pessoas das outras ilhas e do interior de Santiago. A adopção duma postura em relação ao desenvolvimento do país, sempre traduzido em projectos fechados em si mesmos para os quais se procura financiamento externo serviu para alimentar o crescimento rápido dessa administração ficando os benefícios para as populações e para o país muito aquém do possível. Essa deformação administrativa é, para além disso, transplantada para as empresas públicas, peças chaves da opção de desenvolvimento do Governo.
O resultado são empresas ineficazes e que concentram os recursos humanos e outros em três pontos do país – Sal, S. Vicente e Praia. Os famosos três polos de desenvolvimento que só levaram a maior marginalização das outras ilhas e consequente perda de população. O quado fica completo se, à ultracentralização pública e à estratégia dos polos, acrescentar-se a incapacidade (ou inconsciência) do Governo de organizar e estruturar um verdadeiro mercado interno. Como é de conhecimento de todos, não há política alguma de incentivo do comércio interno ficando produtos a estragarem-se numa ilha, enquanto numa outra escasseiam, existindo pelo contrário, barreiras como taxas alfandegárias a serem pagas no transporte de mercadorias de uma luta para outra. Ora, isto é absurdo, e só é compreensível se considerarmos a inércia interna de serviços como as alfandegas que nunca foram repe3nsados e postos ao serviço do desenvolvimento do país.
A Consequência Global foi como já dissemos um fluxo migratório forte para os pólos, a deslocação de recursos humanos para esses centros, ficando as outras ilhas com uma população sem perspectiva de futuro nas frentes de alta intensidade de mão-de-obra ou vivendo de remessas de familiares na emigração. Pode-se imaginar, a nível do indivíduo, o grau de destruição psicológica que isto tende a provocar. A nível do país, significa perda de parcelas não só em termos de recursos como também, considerando a subversão e destruição de valores que tornam cada ilha única, de uma contribuição insubstituível para a caboverdianedade.
É tempo de renovação. É tempo de questionarmos toda a forma como temos sido administrados desde o tempo colonial. É tempo de repensarmos a nossa relação com o Estado, tando como indivíduos, como comunidades ou como ilhas. É tempo de assumirmos a nossa insularidade.
A negação da nossa insularidade, da idiossincrasia própria de cada uma das nossas ilhas é o ponto de partida da administração colonial e da administração pós-independência. As consequências estão aí para todos verem.
No momento em que somos chamados para criação duma Segunda República é essencial termos em mente o seguinte:
O ESTADO em Cabo Verde é ultracentralizado na capital, parece não ter milite o seu crescimento, é ineficaz e esbanjador;
O ESTADO nos últimos quinze anos tem reforçado a dependência do cidadão, escamoteando a sua iniciativa, suprimindo as suas liberdades básicas;
O ESTADO tem provocado a marginalização de várias regiões do país, drenando recursos humanos que utiliza ineficientemente;
O ESTADO, focalizando-se em projectos desgarrados e sem continuidade por ausência de feed-back local, não optimizou a utilização da ajuda externa posta à disposição;
O ESTADO criando uma polícia sem mecanismo de controle na sociedade civil e nos tribunais civis causou situações graves de atropelo dos direitos dos cidadãos criando ansiedade geral e sensação de insegurança;
Tomando estes aspectos como ponto de partida de uma reflexão com vista a um novo Cabo Verde avançamos algumas ideias.
UM projecto político para Cabo Verde deve partir da assumpção da insularidade, i.e., de que cada ilha, para além da sua ambiência física própria, tem uma história socioeconómica e cultural específica:
AO assumir-se a insularidade põe-se de lado a premissa base do estado centralizador e desloca-se o poder para ilha e, dentro da ilha, para a comunidade, tornando assumo, pela primeira vez, possível realizar uma verdadeira vivência democrática;
OS vários órgãos de poder nas comunidades, ilhas e no país deverão ser eleitos por sufrágio directo e universal;
O legislativo ou o Parlamento do País deverá ser bi-camaral em que uma câmara baixa traduzirá a distribuição da população nas diferentes ilhas e uma câmara alta terá um número fixo (dois) de representantes por cada ilha. Com este legislativo bi-camaral pretende-se equilibrar os interesses e o peso de cada ilha no contexto nacional.
O poder em cada ilha deverá ter autonomia necessária e meios para a criação de implementação duma estratégia de desenvolvimento próprio com vista à viabilização e optimização dos recursos de cada ilha, sem detrimento do interesse global do país:
A capital do país – Praia – deverá constituir uma entidade administrativa própria separada de Santiago, passando o centro regional da ilha para a Vila de Assomada;
O poder central deverá preocupar-se com 1º Apoio e concentração das políticas de desenvolvimento de cada ilha; 2º Inserção do país na economia mundial; 3º Assegurar e desenvolver as relações de cooperação com outros países e instituições internacionais; 4º Gestão dos mecanismos macro-económicos; 5º Saúde e Educação.
CADA ilha deverá ter a sua própria polícia subordinada aos órgãos do poder local; uma outra polícia com jurisdição própria, a nível nacional, ficará sob dependência do Procurador-Geral;
O comércio inter-ilhas é essencial e deverá ser apoiado (organização de projectos, financiamento), tendo como base a iniciativa privada;
UMA ligação estreita com a emigração deverá ser desenvolvida com projectos que intensifiquem as relações afectivas entre o país e a sua Diáspora; a comunidade caboverdeana na emigração poderá ser um mercado privilegiado, primeiramente, para produtos com suporte cultural e, mais tarde, outros produtos, permitindo assim uma entrada subtil nos mercados dos países hospedes;
O turismo, para ser uma opção real, deverá ser organizado em dois circuitos; um circuito com investimento estrangeiro em áreas claramente definidas e um outro circuito, com investimentos nacionais privados e da emigração dirigido para o turismo interno e os emigrantes. A interface entre os dois circuitos poderia então ser organizada e ter-se-ia controlo sobre os efeitos maléficos do turismo selvagem, garantindo, ao mesmo tempo, ganhos para o país.
Co mestas ideias pretendemos desencadear um debate sobre o nosso passado com o fim de compreendermos o nosso presente de modo a projectarmos o nosso futuro procurando não cometer os erros anteriores.
Nota: Chamamos atenção para o facto do Mindelinsite ter mantido a escrita original do texto publicado em 1990, o que significa que a grafia de algumas palavras são agora diferentes.