Frederico Sanches, médico cabo-verdiano em Portugal: “É difícil sair de casa para conviver de perto com uma infecção iminente”

Médico cabo-verdiano no Hospital Garcia de Horta, Frederico Sanches tem estado na linha da frente no combate ao Covid-19, coronavírus que já infectou milhares de pessoas em Portugal. Para ele é um dever profissional, mas admite que é difícil sair de casa para conviver de perto com a infecção iminente de um vírus letal. Satisfeito com as medidas restritivas adoptadas em Cabo Verde, Sanches considera o distanciamento social o principal método para se parar a propagação da doença. Além disso, este médico defende o uso da máscara como barreira protetora contra as gotículas carregadas de vírus, relembra que ainda não há uma cura para a doença e que as vacinas não curam, apenas previnem a infecção. Frisa, aliás, que o processo de comercialização de uma vacina é demorado pelo que não acredita que este aspecto esteja resolvido antes do início de 2021. Logo, reforça, as armas mais eficazes são o distanciamento social e a higienização pessoal, tal como alertam os especialistas em todo mundo.

Por: João A. do Rosário

Mindel Insite – Cabo Verde, o seu país de origem, tem deparado, também, com casos positivos da doença do Covid-19. Enquanto médico, como viu a forma de atuação do Governo de Cabo Verde face a pandemia?

Frederico Sanches – Felicito o Governo de Cabo Verde por ter tomado, e na altura certa, medidas difíceis, mas essenciais, no sentido de controlar a propagação do Covid-19 no país. O isolamento social sugerido e o isolamento obrigatório que foi decretado pelo Estado de Emergência são medidas difíceis de se tomar num país de economia frágil, como é o caso de Cabo Verde. Porém, são medidas imprescindíveis para a eficácia do combate à disseminação da doença. Deve ficar-se em casa para se proteger, para proteger os familiares e para cumprir um dever cívico. Ficar em casa não é sair à varanda para conversar ou jogar com os amigos, mas sim, evitar qualquer contacto físico com outras pessoas.

MI – Tem a noção de que grande parte das pessoas teve, no início, comportamento negligente perante a pandemia. Os cabo-verdianos não ligaram, mas agora nota-se alguma melhoria. O que nos pode dizer sobre isto?

FS – Bom, em primeiro lugar dizer que combater o Covid-19 é, na verdade, apostar seriamente na prevenção. A lavagem frequente e a desinfecção das mãos, o distanciamento social, o uso de máscara em todas as situações de risco de contágio e ficar em casa sempre que possível são medidas elementares e que devem ser tidas sempre em consideração. Eu trabalho numa zona de forte concentração de cabo-verdianos e, apesar da nossa cultura de proximidade, parece-me que se está a cumprir essas regras com algum rigor. Em Cabo Verde, as ligações familiares são mais evidentes do que cá na Europa. Existe também o hábito das pessoas se reunirem nas empenas das casas, nas ruas e nas varandas para contarem partidas, organizarem jogos de carta, uril, etc. Recomenda-se que tais hábitos sejam suspensos nos próximos tempos.

MI – Na qualidade de médico, cabo-verdiano, a trabalhar em Portugal, gostaríamos que nos explicasse o que é este novo coronavírus que provoca a doença do Covid-19?

Frederico Sanches – O Covid-19 é uma doença infecciosa causada por um vírus da família coronavírus. Essa família de vírus é conhecida da comunidade científica desde há muitos anos e sabe-se que ela causa no ser humano sintomas que, na maioria das vezes, são ligeiros e de curta duração. No entanto, os vírus sofrem mutações no seu material genético, com alguma frequência, ou seja, modificações que os tornam mais agressivos para o ser humano. Foi o que aconteceu com o coronavírus, por exemplo em 2002, também na China, quando apareceu o SARS-COV (Several Acute respiratory Syndrome), uma variante do coronavírus que causou o Síndrome Respiratória Aguda Grave, doença que resultou em cerca de oito mil pessoas infectadas e oitocentas mortes. Mais tarde, em 2012, verificou-se na Arábia Saudita uma nova infecção provocada pela variante MERS-COV (síndrome respiratória do médio oriente), uma forma de infecção respiratória mais limitada no tempo e confinada no Médio Oriente. O Covid-19 atinge preferencialmente o aparelho respiratório, provocando sintomas como a tosse, a febre e a dificuldade respiratória. No entanto, o doente pode ainda apresentar outros sintomas, nomeadamente dor de cabeça, dores articulares e musculares e vómitos. Esses sintomas fazem também parte de uma gripe sazonal, ou seja, da gripe comum. Na verdade, cerca de oitenta por cento dos doentes infectados com o Covid-19 permanecem assintomáticos ou apresentam sintomas ligeiros. Em cerca de vinte por cento dos casos, a infecção é mais grave e pode evoluir para uma pneumonia e o doente pode necessitar de oxigénio suplementar. Cinco por cento são pneumonias severas com necessidade de ventilação assistida (invasiva ou não), sendo que, desses, alguns doentes entram em falência respiratória e/ou em falência multiorgânica e morte.  

MI – Falou numa evolução para uma “pneumonia grave”, então podia nos explicar mais sobre isto?

FS – Sim. A pneumonia provocada pelo Covid-19 é diferente de uma pneumonia bacteriana, ou seja, aquela que estamos habituados a ouvir falar e que se trata com antibiótico. Trata-se de uma pneumonia viral, chamada pneumonia atípica e que se caracteriza por um processo inflamatório que progressivamente conduz à destruição parcial ou total do parênquima pulmonar. Não responde à terapêutica com antibióticos o que dificulta a sua abordagem do ponto de vista médico.  

Sintomas e alertas

MI – Quando podemos dizer que uma pessoa tem sintomas que podem indiciar que ela está infetada?

FS – Como disse inicialmente em oitenta por cento dos casos os sintomas são ligeiros e podem confundir-se com os de uma gripe habitual. No entanto, quando um doente apresenta febre acima dos 38 graus, e sobretudo se essa febre persiste ao longo de vários dias, se o doente começa a notar dificuldade respiratória, ou seja, quando tenta uma inspiração profunda fica com tosse, ou se nota cansaço ao executar as suas tarefas habituais, essa pessoa poderá estar infectada com o novo coronavírus. Os sintomas de alerta são sobretudo a tosse, a febre persistente e a dificuldade respiratória (falta de ar). Um doente que apresenta esses sintomas deve ficar em casa, cumprir rigorosamente as normas das autoridades de saúde, nomeadamente em relação ao uso de máscara (para proteger as outras pessoas) e pedir ajuda através do número de telefone disponibilizado pelo sistema nacional de saúde. Devo recordar que outros sintomas como a ageusia, falta do paladar, e anosmia, falta do olfacto, também foram referidos por algumas pessoas infetadas pelo Covid-19.

MI – Podemos falar agora das pessoas que fazem parte do grupo de maior risco, sobretudo, os idosos e doentes crónicos?

FS – Obviamente, as pessoas idosas e as com comorbilidades, ou seja, com outras doenças associadas – por exemplo, as portadoras de doenças crónicas como a diabetes, a insuficiência renal crónica ou a hipertensão arterial; doentes com patologia pulmonar de base, portanto com pouca reserva pulmonar e pessoas com doenças cardiovasculares, em geral – são aquelas que correm maior risco de morte perante uma infecção pelo Covid-19. No entanto, a ideia de que o Covid-19 só atinge e provoca mortes em pessoas idosas está errada.  

MI- As pessoas que foram colocadas de quarentena por terem tido contato com pacientes infetados e, depois desse período são liberadas, não deveriam ser testadas antes disso?

FS – Uma pessoa cujo teste para o novo coronavírus deu positivo fica em isolamento domiciliar ou internado num hospital, consoante a gravidade dos sintomas que possa ou não apresentar. O doente é considerado curado após dois testes consecutivos estarem negativos. Uma pessoa é colocada de quarentena, sem ser testada, quando existe uma suspeita de infecção, quer por ter tido contacto próximo com uma infectada, quer por ter viajado de uma área onde a incidência de infecção é grande. Essa pessoa deve permanecer em isolamento os catorze dias que correspondem ao tempo médio de incubação da doença. Eu penso, no entanto, que o ideal seria que essas pessoas, ao fim dos catorze dias, fossem testadas, antes de saírem do isolamento. Basear-se apenas no facto de a pessoa estar assintomática, penso que é insuficiente para devolve-la à liberdade, pois, sabe-se que mesmo assintomática pode estar infectada e, deste modo, continuar a ser um risco para o resto. Por outro lado, a aplicação dos testes terá que ter em consideração a realidade de cada país. Não havendo condições logísticas para testar muita gente, os testes devem ser reservados para as situações mais urgentes como o caso de doentes sintomáticos. Mas, repito, o ideal, no meu entender, seria poder testar todas as pessoas que, por algum motivo, tiveram que ficar em quarentena.

MI – Acredita naquilo que se tem dito da possibilidade da descoberta de uma vacina antes do tempo previsto?

FS – Neste momento não há cura disponível para esta doença. Circulam nas redes sociais falsas informações sobre medicamentos e vacinas para o Covid-19. Estão sendo testados medicamentos, nomeadamente anti-malários em doentes gravemente comprometidos e muito bem seleccionados mas, ainda sem grandes evidências científicas. Por outro lado, estes medicamentos, por terem efeitos secundários indesejáveis, só devem ser manipulados em centros com experiência e com capacidade de monitorização adequada dos doentes. Em relação às vacinas, aproveito para reforçar que elas não curam mas sim previnem, o seu processo de validação e de comercialização é muito complicado e demorado, pelo que, não acredito que venham a aparecer antes do início do próximo ano

MI – E como não há vacina o melhor é protegermos não é Dr.?

FS – Sim, não havendo vacina nem medicamentos que curem, temos que concentrar as nossas energias na prevenção. Para evitar uma doença precisamos, em primeiro lugar, saber como é que ela aparece, ou seja, neste caso, saber como é que o Covid 19 se transmite. O Covid-19 transmite-se através de gotículas produzidas nas vias respiratórias, expelidas pela pessoa contaminada, sobretudo através da tosse e de espirros, mas também, pela fala. Essas gotículas contendo vírus infectam outras pessoas através do contacto directo ou indirecto com a boca, nariz ou olho.

MI – Qual a sua posição, então, sobre o uso ou não de máscara?

FS – Sim, existe alguma polémica em relação ao uso de máscaras. Eu não vou discutir nem questionar o que os outros, incluindo alguns profissionais de saúde, dizem ou pensam a respeito. Como médico que está no terreno a enfrentar a situação todos os dias, vou falar da minha experiência e vou ter em linha de conta os conhecimentos científicos adquiridos até então. A máscara é uma barreira entre a pessoa infectada e a pessoa que se quer defender. As gotículas de saliva ou de expectoração, ao serem expelidas pela pessoa infectada que usa máscara, ficam retidas na parte interna da máscara e não atingem outras pessoas. Igualmente, uma pessoa que usa máscara não será atingida na boca ou no nariz por gotículas expelidas por uma pessoa infectada que não usa máscara. Isto, parece-me evidente! Por isso, apesar de respeitar os seus argumentos, não concordo com quem defende publicamente o não uso de máscaras. Os defensores do não uso de máscara dizem que elas podem transmitir uma falsa sensação de protecção e que a sua utilização incorrecta pode ser prejudicial. Concordo em absoluto, mas então ensinemos as pessoas a utilizarem correctamente as máscaras. É verdade que o uso de máscara isolado não é suficiente. É preciso manter as outras medidas como lavar as mãos com frequência e evitar contactos físicos sempre que possível. Lavar as mãos com água e sabão também requer técnicas que é preciso ensinar às pessoas. A desinfeção com produtos à base de álcool como o álcool-gel ou o álcool a 70% também está recomendado e é eficaz. Fui informado que nas farmácias de Cabo Verde só existem álcool a 96 por cento. O álcool com essa concentração é sem dúvida mais irritante para a pele e, dado a sua volatilidade, por ter menor teor de água, pode não ser tão eficaz para o combate ao coronavírus, apesar de, na ausência do álcool a setenta por cento, poder ser utilizado.

 O estado psicológico dos médicos

MI – Esta situação da pandemia, para vocês médicos, pode trazer-vos alguma apreensão. Se calhar o cidadão comum sequer tem a noção do vosso estado psicológico ao lidar com uma doença destas. Qual tem sido o vosso estado de espírito?

FS- Nós, os profissionais de saúde, assim como os agentes de segurança pública e os bombeiros, feliz ou infelizmente, temos de sair de casa todos os dias e enfrentar esta situação. Quando se escolhe o curso de medicina sabe-se que isto um dia pode acontecer. Por isso é nosso dever estar na linha da frente e, com coragem, defender a saúde e o bem-estar da nossa população. No entanto, não nos podem negar o direito de exigir que a população faça a sua parte e que cumpra com rigor as recomendações feitas pelas autoridades sanitárias, ficando em casa. 

MI- Fizemos esta pergunta porque vários médicos e outros profissionais já foram infetados. Assim sendo, existe a eminência de poder contaminar a sua família ?

FS – Vários profissionais de saúde já se infectaram, outros já deram a sua vida por esta causa. Acreditem que é difícil sair de casa para conviver de perto com esta situação de infecção iminente. Sabemos que o inimigo é invisível e que está à espreita de um simples descuido para nos atingir e, através de nós, atingir a nossa família. Mas chega um momento em que já não pensamos em nós. O que nos empurra para a insónia é saber que temos uma família em casa, a quem não damos a devida atenção, e que, apesar de tudo, corre o risco de ser infectada por nós. É no entanto nosso dever dar a cara ao inimigo e é nosso direito exigir que a população fique em casa e siga as determinações das autoridades de saúde. Se cada um de nós fizer a sua parte, venceremos esse inimigo invisível.

MI- Como viria a possibilidade de alguma vez vir a ser chamado a dar o seu contributo em Cabo Verde?

FS – Sou cabo-verdiano e estarei sempre aberto e disponível para, dentro das minhas possibilidades, ajudar e colaborar com o sistema de Saúde do meu país. Antes de terminar, agradeço esta oportunidade que me deram de, através desta entrevista, dar o meu modesto contributo para o meu país. 

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