Feliciano Reis: “Em Cabo Verde a situação da Covid pode tornar-se mais preocupante se não for adoptada uma estratégia diferente”

 

Feliciano Reis, médico cabo-verdiano em Portugal, apela às autoridades do seu país no sentido de melhorarem a estratégia de combate à pandemia da Covid-19. Para ele o caminho não deve passar só pelo corte da via de transmissão do vírus, mas também no sentido de melhorar a qualidade de vida das pessoas para que elas possam ter meios de fazer face à doença. Feliciano Reis é de opinião de que Cabo Verde não tem de fazer tantos testes como se fez até aqui na Europa porque não dispõe dessa capacidade financeira. Considera ainda que a ida às urnas no país é viável desde que se mantenha o distanciamento, higienização das mãos com ordem e disciplina.  

Por João A. do Rosário

MI – Dr. Feliciano Reis, neste momento, da fase da pandemia do Covid-19, enquanto médico, o que mais o preocupa? 

FR – A minha preocupação centra-se essencialmente no número de infetados que temos atualmente, como é óbvio, fruto de uma estratégia errada que foi adotada e que consiste numa opção estritamente biomédica, ou seja, de preocupação apenas com a transmissão viral, para controlar a disseminação do vírus e em que não tiveram em conta outros factores que eram importantíssimos desde o início. Se na devida altura tivessem tomado a medida diferente do confinamento não havia essa cadeia de transmissão que existe hoje. 

MI – Sabemos da prevalência de outras enfermidades que estão a ser esquecidas, caso de doenças crónicas e da gripe sazonal, o adiamento de cirurgias devido a falta de meios humanos nos hospitais públicos para se fazer face às demandas, e que merece uma certa reflexão. O que pensa sobre isso, na sua posição de médico que está na linha da frente, no hospital e no Centro de Saúde da área onde trabalha? 

FR – Estamos a pensar já na questão da gripe sazonal. Antes devo dizer que já tivemos mais de seis meses de pandemia da Covid-19, período em que houve muitas patologias que foram praticamente esquecidas, deixadas de lado. São esses doentes que nos deixam preocupados. Isto acontece porque, quando os políticos tomam decisões, não escutam os profissionais de saúde. Nós queremos tratar todos os doentes, mas o que acontece é que as estratégias muitas vezes não nos permitem.

Dou um exemplo: os hospitais funcionam com Covid e não Covid. A partir do momento em que você tem um hospital que funcione com Covid e não Covid dificilmente consegue lidar com outras patologias. Foi o que aconteceu. Nós os médicos pensamos que devíamos ter feito uma abordagem diferente. Aquando das gripes tivemos determinadas zonas especificas onde colocávamos esses doentes. Mas, a partir do momento em que não fazem espaços específicos para esses doentes e deixamos os hospitais para os doentes que sempre tratamos, haverá sempre problemas. Muitas cirurgias não foram realizadas devido ao facto de os hospitais terem sido utilizados para internamente com doentes Covid e não-Covid tornando-se praticamente impossível fazer cirurgias devido a propagação da doença. Portanto, teríamos de ter hospitais de campanha e outras zonas só para tratamento de doentes Covid. Devíamos ter essas abordagens no sentido de diminuir consideravelmente esta linha de transmissão que propagou e agora mais que nunca.

Problemas psicológicos e mentais

MI – Os médicos e profissionais de saúde estão insatisfeitos devido as políticas que estão a ser implementadas pelas autoridades. Teme alguma repercussão no futuro em relação aos efeitos psicossocial e económicos que possam derivar dessa situação global? 

FR – Para mim o futuro é hoje. Já se passaram mais de seis meses e já vemos o que está a acontecer. Os efeitos psicossocial e económico estão aí e teremos muitas pessoas com problemas psicológicos e mentais, nomeadamente o agravamento das outras comorbilidades em que os doentes já apresentam diabetes, doenças metabólicos, cardiovasculares, oncológicos, são aquelas doenças que não tiveram assistência devido à Covid-19. Portanto, repito, o futuro é hoje e é preocupante a situação mental. Preocupa-nos sim aquilo a que se convencionou chamar de Sindemia, ou seja uma junção da pandemia com outras situações de doenças não transmissíveis que facilmente possa vir a provocar efeitos irreversíveis as nossas vidas. As mortes que acontecem derivadas a essas doenças que não foram tratadas porque a situação do covid assim não o permitiu.

MI – As medidas de contenção da pandemia do Covid-19 que foram tomadas revelaram-se insuficientes devido a sua propagação a nível global. Na sua opinião o que terá estado na base desse descontrolo. 

FR – Penso que estará relacionada com a forma como essa situação foi tratada. Vou voltar a falar das patologias e das estratégias que foram adoptadas e que levaram ao descontrolo. É  verdade que o descontrolo de que se fala tem mais a ver com o número de testes que estão a ser feitos, mas tem muito a ver com a reabertura de escola e do trabalho, daí a cadeia de transmissão começar a ficar mais perigosa tendo em conta o número de pessoas a circular. Isto foi tudo uma estratégia que foi tomada quanto a mim errada. Estratégia essencialmente biomédica.

/ Não temos que estar a fazer tantos testes como se fez até aqui na Europa porque não temos esse dinheiro e essa capacidade. Vamos é proteger os nossos idosos, vamos proteger as pessoas com outras comorbilidades. 

O mundo precisa de uma intervenção global. Nós temos muita pobreza, muitos estratos sociais baixos no mundo. As medidas de contenção do vírus passam por lavar as mãos, usar máscaras respiratórias, isolamento social, que têm muito a ver com a pobreza. Nós temos de começar a ter a visão global nesta matéria. Este vírus é complexo não devemos ter só uma estratégia biomédica, temos de atuar numa base que tem a ver com o melhorar das condições de vida das pessoas. A taxa desproporcional de resultados adversos em comunidades desfavorecidas de baixa renda é uma coisa abismal. Isto é uma situação global que merece uma estratégia global. As pessoas não estão preparadas porque são pobres, não têm dinheiro. Uma visão global para que haja uma melhoria de qualidade de vida das pessoas e só assim será possível, com certeza, acabar com esta pandemia, digo sindemia.

Cabo Verde, um caso diferente

MI – Em relação a Cabo Verde como tem acompanhado o evoluir da situação? 

FR – Cabo Verde não foge a regra em relação as directrizes emanadas pela OMS. No entanto temos que ter em consideração que Cabo Verde é um país arquipelágico e onde a situação pode perfeitamente ser diferente se quisermos melhorar. Nós não temos que ser igual aos outros ou, ter uma estratégia igual aos outros porque entendemos que a situação de Cabo Verde é bem diferente dos outros. Eu penso que não será assim tão grave o evoluir da situação em Cabo Verde dado que temos essencialmente duas ilhas ou três ilhas com mais casos de Covid-19.

Tenho conversado com as pessoas e reparo que estão centradas mais na questão do prolongar da situação. Não temos que estar a fazer tantos testes como se fez até aqui na Europa porque não temos esse dinheiro e essa capacidade. Vamos é proteger os nossos idosos, vamos proteger as pessoas com outras comorbilidades.  Não esquecer que estamos a falar de uma doença em que mais de 80 por cento de pessoas são assintomáticas. Agora, quanto aos testes, o dinheiro que é gasto devia ser utilizado noutras situações. Em Cabo Verde podíamos ter dado a situação não ser assim tão grave como acontece noutras partes do mundo, Europa, Estados Unidos, Brasil, India, Mexico, não temos a necessidade gastar tanto dinheiro, porque não temos essa capacidade financeira. Não esqueçamos que nós não estamos inseridos em nenhuma comunidade abastada, nós não temos dinheiro para estar a gastá-lo. Temos de aproveita-lo para dar condições aos nossos cidadãos para que estejam preparados para enfrentar o vírus e não numa situação destas puramente economicista como está acontecer. 

Por isso apelo aos políticos do meu pais no sentido de melhorarem a estratégia de não só quebrar a via de transmissão do vírus mas sim de melhor a qualidade de vida das pessoas para que elas entendam e percebam que esta é uma doença de consciência individual. Entendo por isso a situação em Cabo Verde  poder vir a tornar mais preocupante se a não houver uma estratégia global e diferente da que foi montada até agora. A OMS fala num espaço de 2 anos para se ter a vacina, eu acho estranho isso. O que me leva a pensar que esta estratégia é para que tenhamos a imunidade de grupo. Para isso todos vão apanhar o covid. Os multimilionários vão ficar mais ricos e os pobres vao ser enterrados. Cabo Verde pode ser diferente sim. 

MI – O país fechou-se e agora muitas pessoas consideram que tal vai ter enorme repercussão na vida do país e que depende do turismo. Foram medidas acertadas o de fecho das fronteiras? Pergunto isso para saber da sua opinião, claro está, enquanto médico? 

FR – Pelo facto de termos fechado as fronteiras vamos ter uma enorme repercussão na vida das pessoas. Nós estamos a falar de um pais virado para o turismo em que o PIB depende de uma grande percentagem do turismo. Ficamos sem o turismo, ficamos sem muitos filhos que não voltaram a terra e, portanto, agora a estratégia terá que ser outra.  Agora, como médico, para mim vamos ter que tentar voltar à nossa vida normal, termos a nossa vida normal, dar responsabilidade individual às pessoas para que tenham cuidados básicos. Digo e repito, estamos a falar de uma doença respiratória, usar máscaras, principalmente em sítios públicos. Nós não acabamos com a Covid até ainda e há vida para além da Covid. É esta a realidade, abriu-se as fronteiras, a situação é grave e vai haver algumas mortes. Nada de alarmismos vamos trabalhar para reduzir o número de mortes e é isso que é o mais importante  e a vida terá de continuar.

MI – Está-se perante o início do novo ano lectivo e sabemos que em CV vai dar o arranco como aulas presenciais nalgumas ilhas e noutras irá manter, digamos assim, a Telescola. Concorda com esta estratégia tendo em conta a saúde das crianças?  

FR- Eu, pessoalmente concordo com a abertura e frequência das aulas presenciais. Eu explico, a escola é o  futuro e, isto quer dizer que temos de dar uma vida saudável as nossas crianças. Para ter vida saudável tem de ter relacionamento. Têm que aprender e a educação da criança vai desde a escola, dos pais, dos médicos, dos amigos, tios, primos, toda a gente. Se fizermos o encerramento em que a criança não terá todos esses factores, não vai haver desenvolvimento.

/ Nós não acabamos com a Covid até ainda e há vida para além da Covid. É esta a realidade, abriram-se as fronteiras, a situação é grave e vai haver algumas mortes.

O desenvolvimento psicossocial da criança depende de todos esses factores. Agora digo e repito vamos proteger aquelas crianças doentes, vamos proteger as crianças obesas, acabar com a obesidade, instruir os nossos professores, dar-lhes condições para termos escolas saudáveis e livre de perigo. Se tivermos uma criança fechada todos os dias em casa, a ter educação fechada em telescola iremos ter mais tarde pessoas com doenças mentais graves. Vamos dar liberdade aos nossos filhos e as nossas crianças.

MI – Muita gente está preocupada com a progressão da Covid-19 em Cabo Verde. As estratégias adoptadas devem ser questionadas tendo em conta o evoluir da pandemia? Será que se deve valorizar mais outras situações relacionadas com a saúde da população… 

FR – Para mim Cabo Verde continua a ser como já respondemos em relação ao mundo inteiro. É dar condições para que as pessoas possam lutar contra esse vírus. A população tem de estar preparada e deve ser responsável. Os políticos devem apresentar soluções viáveis. As pessoas querem que sejam apresentadas soluções e estas devam passar por uma estratégia que envolve o melhoramento das condições de vida das populações. Com isso vamos ter melhor saúde de certeza.

MI – Na sua opinião, tendo em conta as campanhas para as eleições autárquicas em Cabo Verde que já decorreu e as eleições hoje..- conjugam com a situação sanitária que se vive de momento tendo em conta as medidas de distanciamento social decretadas? 

FR – Em relação às eleições autárquicas em Cabo Verde posso fazer uma alusão dizendo que a  democracia é importante e nos temos que dar força aos nossos políticos e legitima-los. Para isso temos de votar para que possamos ter representantes capazes de tomar as decisões acertadas e globais que são preconizadas e pretendidas a nível da situação da doença. Portanto é possível manter o distanciamento, higienização das mãos e ir votar, sem problemas, temos é que dar condições as pessoas para que isso aconteça sendo perfeitamente viável com ordem e disciplina.

Sair da versão mobile