O professor João Estêvão defende uma reformulação estrutural do “modelo económico” de Cabo Verde como sendo o desejável, sem descurar o objectivo principal da política neste sector, durante o período da retoma pós-pandemia, que deve ser a “reconstrução da economia”. Numa entrevista exclusiva ao Mindelinsite, este investigador cabo-verdiano da Universidade de Lisboa disse que Cabo Verde não dispõe de uma verdadeira política do Turismo, sendo essa falta de política, ela própria, um reflexo da ausência de uma estratégia para o território nacional.
O economista, que conversou com o Mindelinsite para abordar os efeitos e as consequências da Covid-19 na economia cabo-verdiana, acabou por vincar a sua ideia da reformulação estrutural do “modelo económico” de Cabo Verde apontando alguns pontos importantes que, na sua opinião, deverão constar desse modelo como uma aposta no sector do turismo diferente do “tudo incluído”, a industrialização da agricultura, o aumento e a diversificação da indústria nacional, a prossecução com a nova orientação para atividades ligadas ao mar e o desenvolvimento de atividades e serviços exportáveis, sobretudo, para o continente africano.
Em relação às consequências da Covid-19 na economia, a ideia de João Estêvão é que a acção da política económica em Cabo Verde para combater os efeitos pandémicos deverá ter em conta momentos diferentes, à semelhança do que tem acontecido na grande parte dos países para fazer face aos efeitos desta crise sanitária e económica. O primeiro deve ser o da intervenção para mitigar os efeitos imediatos do coronavírus, ou seja, o aumento das despesas com os cuidados de saúde, apoio à perda de rendimento das famílias e ajuda às empresas em crise, como reconhece já ter sido feito. O segundo passo passa pela estabilização da situação económica e social, com um programa pensado para funcionar até um ano, cujos objectivos principais deveriam ser, entre outros, o reforço do serviço nacional de saúde (pensando numa eventual segunda onda do vírus), protecção dos rendimentos, apoio à recuperação de empresas, apoio ao emprego e a reactivação dos sistemas de ensino.
Este especialista em economia congratulou-se com a iniciativa do Governo de Cabo Verde pelo facto de já ter começado a trabalhar na preparação de um plano de promoção da economia pós-pandemia do Covid-19. “Trata-se de uma boa iniciativa, mas julgo que o Governo deve dar mais atenção à situação de curto prazo, ao que é preciso fazer para estabilizar a situação económica e social, o que também ajudará a compreender melhor a evolução da situação nos próximos meses”, anotou João Estêvão, no entendimento de que pensar melhor o curto prazo ajudará a preparar um debate mais sereno sobre a reconstrução da economia no longo prazo.
Por outro lado, João Estêvão disse que a falta de dimensão económica e um elevado peso da dívida pública podem constituir dificuldades para que Cabo Verde, sem mobilizar formas de apoio internacional, possa desenvolver acções necessárias para construir respostas imediatas para fazer face às consequências da pandemia do Covid-19. Apesar destes constrangimentos com que depara, João Estêvão enalteceu, entretanto, o facto de o pais ter conseguido algum apoio para esse efeito, realçando o facto de o Governo de Cabo Verde ter procurado construir respostas imediatas para as consequências desta pandemia, tal como outros países têm feito.
Este investigador na Universidade de Lisboa recomendou, deste modo, a criação de “reservas estratégicas” como forma de evitar situações idênticas às da crise pandémica que se vive atualmente em todo o mundo. “Uma primeira grande lição que fica desta crise sanitária é a necessidade de um maior investimento nos sistemas de saúde nacionais, de forma a garantir a criação de reservas estratégicas, necessárias para enfrentar situações semelhantes no futuro”, considerou.
Aquele economista fez saber que a natureza específica desta crise assenta no modo extremamente rápido como o vírus se dissemina, o que pressiona todo o sistema nacional de saúde, com consequências económicas imediatamente visíveis. De acordo com este economista, desde os anos 70 que esta crise sanitária e económica coloca de imediato a necessidade de acções rápidas para se reduzir a propagação do vírus e manter as pessoas tão saudáveis e seguras quanto possível.
João Estevão esclareceu ainda que, mais do que a fragilidade dos governos, a crise revelou que a generalidade dos países, com pouquíssimas excepções, não estava preparado para uma pandemia desta natureza. Enfatiza que, com vários estudos académicos publicados, a crise da Covid-19 envolve choques económicos, tanto do lado da oferta como da procura, e que conjugados levam com que a Economia entre em ritmo de colapso.
“Por isso mesmo, num tempo imediato, o objectivo principal da política económica não é estimular a economia, porque não é possível, mas sim criar condições para a mitigação dos problemas causados pela Covid-19”, anotou João Estêvão.
Ainda quanto à acção da política económica no combate às consequências da pandemia, João Estêvão distinguiu dois momentos no curto prazo: o imediato em que, de acordo com o investigador, se procurou criar as condições para a mitigação das consequências imediatas; o segundo tem a ver com a fase em que se procura estabilizar a situação económica e social e criar condições para o início da reconstrução económica.
Recessão “dura”
Instado a comentar as previsões económicas que apontam para uma recessão ao nível de 6 a 7% em Cabo Verde, João Estêvão fez saber que ela será necessariamente dura, quaisquer que sejam os valores que ela possa atingir visto que o país, no seu entender, apresenta um grande constrangimento que é o nível da sua dívida pública. “Esta é uma questão importante, pois um dos factores mais relevantes para a reconstrução económica será sempre a capacidade de alcançar um elevado volume de financiamento”, sustentou.
O processo de reconstrução, no seu dizer, vai ser bastante complexo em Cabo Verde, pois, para ele, a economia interna encontra-se hoje desarticulada, dissociada da economia mundial e com uma diversidade de problemas que terão de ser resolvidos ao longo desse processo. Para este professor, na situação actual, existe um conjunto de factores que influencia, ou condiciona, a alavancagem da economia cabo-verdiana nos próximos tempos e que exige um maior esforço orçamental e medidas de apoio para a consolidação do sistema nacional de saúde, a procura de formas de agilização de financiamento de emergência e de linhas de créditos de baixo custo junto das organizações financeiras internacionais.
“O processo de reconstrução, no seu dizer, vai ser bastante complexo em Cabo Verde, pois, para ele, a economia interna encontra-se hoje desarticulada, dissociada da economia mundial…”
Para além disso advertiu para a necessidade de se procurar encontrar, a nível de movimentos internacionais, vias para se obter o perdão, alívio, reestruturação ou suspensão generosa das obrigações como tem acontecido com os países endividados.
Simultaneamente, é necessário negociar com as organizações e financeiras internacionais, o desenho de novos instrumentos técnicos e financeiros para apoiar os países que se encontram sob pressão fiscal.
João Estêvão destacou o facto de a alavancagem da economia cabo-verdiana também depender muito da evolução da economia mundial e da dinâmica dos principais parceiros do país, nomeadamente, da União Europeia visto Cabo Verde estar fortemente ligada à economia do espaço europeu, tanto em termos do comércio, como do investimento directo e das remessas dos emigrantes cabo-verdianos, mas também da ligação monetária existente e que foi uma peça fundamental no progresso nas duas últimas décadas.
Considerou ainda o turismo como sendo fundamental para a retoma e a reconstrução da economia cabo-verdiana, daí sugerir que Cabo Verde tem de assumir o controlo da taxa de incidência do Covid-19 como um activo estratégico, indispensável para que possa apresentar-se como um destino com segurança sanitária, de forma a iniciar um percurso de recuperação dos fluxos de turismo.
A dado passo da entrevista João Estêvão citou como exemplo para defender a sua ideia da estabilização a curto prazo, a proposta de acção que é o Plano de Estabilização Económica e Social anunciado há dias pelo Primeiro-ministro de Portugal, indicando ainda que é uma questão que vem sendo discutida em vários países.
João Estêvão fez saber a propósito que objectivo principal é estabilizar a situação económica e social para evitar o colapso e garantir as condições para a reconstrução económica, mas também o alargamento das condições de saúde e de protecção social.
Retoma rápida
Em relação ao processo de retoma rápida da economia, este investigador disse que não sabe se pode falar disso por entender que o processo de reconstrução económica pós-pandemia vai ser complexo, dependendo muito do nível de desenvolvimento dos diferentes países. “Uma coisa é o processo de retoma num país como a Alemanha e outra, bem diferente, é o processo num país como Portugal ou, ainda menos desenvolvido, como Cabo Verde”, sustentou.
No entendimento deste especialista em economia, a rapidez, ou não, da retoma económica vai depender da intensidade e eficácia da estabilização e da capacidade de financiamento da reconstrução económica, citando o caso como a União Europeia está a preparar-se para financiar a reconstrução económica dos países-membro, sobretudo os que mais sofreram com a pandemia.
“A União Europeia tem em discussão uma proposta da Comissão de 750 mil milhões de euros para um Fundo de Recuperação, enquanto o Banco Central Europeu vai promover um programa de compra de activos, sobretudo públicos, na ordem de 1,35 biliões de euros (ou 1.350 mil milhões de euros)”, sublinhou João Estêvão para quem trata-se de um elevado esforço de financiamento público de que depende a tal de retoma.
Transporte aéreo
Questionado sobre a problemática dos transportes aéreos em Cabo Verde, João Estêvão considerou que ela está interligada com uma crise no sector a nível mundial considerando, no seu entender, que as expectativas de recuperação não são muito altas.
“Por um lado, não é fácil prever o futuro do transporte aéreo e, por outro, espera-se que a recuperação do sector leve alguns anos”, indicou.
Aquele Académico considerou que em relação à Cabo Verde Airlines (CVA), ela foi apanhada pela pandemia numa fase ainda inicial do processo de renovação da companhia cabo-verdiana referindo-se a propósito que o Estado tinha começado um processo de alienação do capital da empresa que detinha e, com a interrupção, ainda ficaram trinta e nove por cento por colocar.
“Perante o processo histórico dos TACV, penso que não tem sentido voltar atrás e renacionalizar a companhia. O que tenho dúvidas é se o Estado não deverá manter uma parcela do capital da CVA.”
Em relação a este processo sublinhou que o Governo já tinha decidido pela suspensão e a inclusão da CVA no conjunto de empresas que serão objectos de medidas de apoio que na opinião daquele economista foi um procedimento assertivo por parte do Governo devendo as medidas de apoio, na sua opinião, ser negociadas com a Icelandair.
“Perante o processo histórico dos TACV, penso que não tem sentido voltar atrás e renacionalizar a companhia. O que tenho dúvidas é se o Estado não deverá manter uma parcela do capital da CVA”, advertiu João Estêvão para quem enquanto companhia de bandeira, a CVA não tem de ser pública, mas sendo privada tem de existir uma estratégia articulada com o Estado, nomeadamente, para garantir que as comunidades cabo-verdianas na diáspora estão adequadamente servidas.
Turismo
Questionado sobre a questão do Turismo em Cabo Verde, João Estêvão foi peremptório em afirmar que, por mais que se queira dizer o contrário, o país não tem uma verdadeira política de turismo. Este especialista vai mais longe ainda na sua crítica, afirmando que essa ausência de política é, ela própria, um reflexo da ausência de uma estratégia para o território nacional.
“Desde a independência, os sucessivos Governos têm construído um país excessivamente centralizado e concentrado em Santiago” afirmou João Estêvão e deu a entender que, do ponto de vista do turismo, isso significa ausência de capacidade e falta de vontade para se compreender a importância da diversidade que a configuração arquipelágica produziu.
“Desde a independência, os sucessivos Governos têm construído um país excessivamente centralizado e concentrado em Santiago”
Segundo o nosso interlocutor, a combinação de uma estratégia para o território com uma política de turismo permitiria uma concepção assente, exactamente, no aproveitamento da diversidade das ilhas, na sua orografia, paisagens, praias, património e culturas locais.
De acordo com João Estêvão, a pressão da procura e a ausência de uma política de oferta de turismo contribuiu para a ausência de articulações dinâmicas com a economia interna, capazes de gerar verdadeiros efeitos de arrastamento económico.
No entender de João Estêvão, o resultado de tudo isto é a desarticulação entre um turismo de alojamento “tudo incluído” e os restantes sectores da economia cabo-verdiana.
“Um modelo de turismo mais adequado para Cabo Verde é, em minha opinião, aquele que crie condições para se alcançar um equilíbrio entre políticas de turismo assentes na diversidade do arquipélago e os interesses da procura e dos investidores” afirmou.
Aquele economista defende assim um modelo que procure criar formas de articulação entre o turismo e diferentes actividades produtivas, comércio e distribuição, bem como actividades culturais e de artesanato nacional que no seu entender só assim será possível criar sinergias dinâmicas para a economia e a sociedade cabo-verdiana.
Transversalidade dos efeitos da crise e a seca
João Estêvão vincou ainda ideia de que a crise sanitária e suas consequências económicas e sociais agravam a situação, qualquer que seja o tema que tomemos em consideração.
Sobre os efeitos da seca que nos últimos três anos tem assolado Cabo Verde, João Estêvão considerou que as suas consequências e a redução da produção agrícola tornam-se mais graves, pois o fechamento das fronteiras e a paralisação dos transportes dificultam a importação de bens de primeira necessidade para compensar a fraqueza da produção agrícola.
“Na medida em que o combate à pandemia exige o crescimento do espaço fiscal, isso agrava os problemas orçamentais e pressiona mais a dívida pública”, sustentou aquele professor.
Segundo ele, neste momento, sem receitas de turismo e com a queda das exportações, o crescimento de importações ligadas ao combate à pandemia afectará, naturalmente, a balança de pagamentos, o que coloca também a necessidade de negociar algumas formas de apoio.
A inflação não tem tido níveis preocupantes, pelo menos desde 2013, mas segundo fez saber, será influenciada negativamente pela persistência da seca e pelas consequências económicas da pandemia.
João Estêvão discorda da questão de que a crise sanitária que se vive possa afectar muito a parceria estratégica entre Cabo Verde e a União Europeia (UE), pois segundo ele, a parceria interessa a ambos e do ponto de vista financeiro envolve valores pouco significativos para a UE.
“Repare que esta união já fez um desembolso antecipado de 5 milhões de euros aos cofres do Estado cabo-verdiano e estão a decorrer negociações que dão prioridade a acções orientadas para a emergência sanitária e para as consequências da pandemia”, sustentou.
Segundo aquele economista, a situação que se vive nos países onde se encontram as principais comunidades imigradas cabo-verdianas tem, naturalmente, efeitos importantes sobre as remessas para Cabo Verde, tal como aconteceu na década passada.
Desde finais da década de 1990 até 2007, as remessas de emigrantes representaram, em média, 12% do PIB. Durante a crise financeira internacional que eclodiu em 2008, elas caíram para uma média de quase 9% do PIB entre 2008 e 2010. Passado este período, o valor das remessas regressou a níveis semelhantes aos de antes da crise, com uma média de cerca de 11% do PIB entre 2011 e 2019.
De acordo com João Estêvão não se pode prever a dimensão da quebra nas remessas de emigrantes que a pandemia actual vai causar, mas a profundidade desta crise indica que os efeitos serão necessariamente significativos
“Uma quebra nas remessas não só reduz o rendimento das famílias dos emigrantes, o que é grave nesta situação de crise, como diminui o volume de divisas que o país pode obter”, indicou
João Estêvão indicou ainda que o facto de Cabo Verde figurar na lista dos países de desenvolvimento medio não pode ser motivo penalizador em relação ao acesso aos apoios internacionais para fazer face a crise sanitária e económica.
“A crise gerada pelo Covid-19 é mundial e afecta todos os países, independentemente do nível de desenvolvimento, o que torna transversal a necessidade de planos de emergência e de apoio à recuperação económica pós-pandemia” enalteceu aquele investigador.
A maior parte dos pequenos Estados insulares não está entre os países mais pobres, mas são bastante vulneráveis e essa é a realidade de Cabo Verde que no entender de João Estêvão, a sua vulnerabilidade é reconhecida e por isso têm de ser considerado neste contexto.
O primeiro ministro de Cabo Verde, José Ulisses Correia e Silva, terá declarado recentemente de que o Governo de Cabo Verde considera este ano de 2020 como perdido. Perante isso, João Estêvão, explicou que o Pedido de Desembolso ao abrigo da Linha de Crédito Rápido que Cabo Verde apresentou ao Fundo Monetário Internacional, em Abril deste ano, foi considerado um crescimento percentual do PIB de 5,5% em 2019 e um decréscimo previsto de 5,5% em 2020.
Citando o mesmo documento, João Estêvão deu a entender que ele projecta um crescimento percentual do PIB de 5% em 2021, o que quer dizer que no próximo ano a economia cabo-verdiana poderá retomar a trajectória de crescimento do PIB no ponto em que se encontrava em 2019.
“Parece-me ser este o fundamento da afirmação do Primeiro-ministro, querendo dizer que ao retomarmos a trajectória no ponto em que estávamos em 2019, na prática perdemos o ano de 2020 para o crescimento económico”, conclui aquele professor de economia, João Estêvão.
Biografia
João Estêvão nasceu na Ilha do Sal, Cabo Verde, descendente de famílias de São Nicolau, Santo Antão e São Vicente. Ainda na infância, a família mudou para São Vicente, onde concluí os ensinos primário e liceal. Em Lisboa, em 1971, ingressou na então Universidade Técnica de Lisboa, onde concluiu a licenciatura em Economia, em 1977, e o doutoramento em Economia, em 1990. Desde a conclusão da licenciatura, está ligado à Universidade de Lisboa como docente e investigador. No campo da investigação científica, tenho trabalhado nos domínios da economia do crescimento e do desenvolvimento, da história económica e monetária e dos estudos sobre pequenas economias insulares, em especial, sobre Cabo Verde.
João A. do Rosário, em Lisboa