Dualidade de critérios

Por: Maria Odette Pinheiro

Qualquer pessoa que minimamente tenha feito investigação científica sabe que em qualquer estudo, avaliação ou contagem, os critérios usados para os diversos conjuntos devem ser rigorosamente uniformes para que os resultados possam ser comparados. É um princípio básico. Questões epidemiológicas não são excepção.

Foi por isso que estranhámos quando a equipa técnica do Ministério da Saúde resolveu reavaliar o caso de São Vicente, somando-lhe dois casos que foram negativos para o vírus activo (PCR), mas posteriormente mostraram ter anticorpos positivos – quando idêntica reavaliação não estava a ser feita em nenhum outro lugar. E estranhámos, também, o timing: o anúncio veio 44 horas antes de se saber se o estado de emergência seria levantado em São Vicente, como todos esperavam. São Vicente estremeceu!

“Aberrante era que o novo critério de contagem fosse só para São Vicente: somar ao único caso com vírus activo (o único PCR positivo na ilha) dois casos evidenciados a posteriori por testes de anticorpos; nas outras ilhas só eram contados casos que tinham o vírus activo no momento em que foram testados.” 

Imediatamente falei com alguns colegas, até em outras ilhas, que também estranhavam. Recebi telefonemas de pessoas atónitas com o que tinham ouvido. E a explicação que eu dava era que os anticorpos mostravam que realmente os dois familiares da doente tinham tido contacto com o vírus num passado em relação ao teste. Aberrante era que o novo critério de contagem fosse só para São Vicente: somar ao único caso com vírus activo (o único PCR positivo na ilha) dois casos evidenciados a posteriori por testes de anticorpos (que não identificam o vírus activo, somente a reacção de uma pessoa que teve contacto com esse vírus – e, por sinal, os únicos que testaram positivo para anticorpos, de muitos testes feitos em São Vicente); nas outras ilhas só eram contados casos que tinham o vírus activo no momento em que foram testados. 

Como tenho a convicção de que todos que possamos contribuir para que algo melhore ou endireite o devemos fazer, contactei alguém com responsabilidade no Ministério da Saúde, dizendo exactamente o que eu pensava: que não é correcto usar dois pesos e duas medidas em qualquer situação, mormente em casos de investigação científica. Que ou o Ministério esperava até poder ou querer fazer testes de anticorpos aos contactos que nas outras ilhas fossem negativos para o PCR; e, então, só então, seria legítimo contar como doentes curados todos que tivessem anticorpos; ou, caso não o pudesse ou quisesse fazer, não devia contar os dois casos em causa – por não haver uniformidade de critérios entre as ilhas. A solução seria, portanto, fazer uma “revisão da revisão” dos casos de São Vicente, desta vez para baixo! De três para um!

“Se em São Vicente o número de ‘doentes’ triplicou com esse modo de contar – e isso com uma família recatada, em que a doente até saiu de máscara quando se sentiu enferma -, imaginem se o mesmo critério fosse aplicado lá onde o vírus foi passeado, dançado, visitado de quarto para quarto…”

Claro que não esperei que o fizessem! Seria inédito ente nós! E hoje, 9 de Maio, ouvi na conferência de imprensa que já começaram a ser realizados testes de anticorpos noutras ilhas, nomeadamente na Boa Vista, mas que, sendo positivos, não vão ser contados! E à justificada insistência da jornalista responderam que em São Vicente os testes foram feitos para investigar a cadeia de transmissão. É verdade. E foi bom, pois realmente esclareceu-se a questão. Mas, então, que se ficasse por isso! Se outros que tiverem anticorpos não vão ser contados, por que foram contados esses dois? Anticorpos são anticorpos em qualquer lado: são sinais de que o vírus entrou no organismo das pessoas que os tiverem. Como podemos considerar uns como doentes curados e os outros não? Privilégio de São Vicente (pela negativa)?

Se em São Vicente o número de “doentes” triplicou com esse modo de contar – e isso com uma família recatada, em que a doente até saiu de máscara quando se sentiu enferma, imaginem se o mesmo critério fosse aplicado lá onde o vírus foi passeado, dançado, visitado de quarto para quarto nas quarentenas conjuntas em que não se sabia ainda quem era positivo ou negativo (para o vírus), em que foi alegremente ao trabalho, conviveu durante dias e dias, inocentemente, debaixo do mesmo tecto de uma família numerosa, como ouvimos na TV, etc., etc.? 

Realmente, fazem bem em não contar os que têm anticorpos positivos nas outras ilhas afectadas! Eu não gostaria que Cabo Verde fizesse manchetes mundiais com os números que teríamos! Aliás, na Europa, não se está a contar desse modo. Até porque as pessoas com PCR negativo e anticorpos positivos não sobrecarregam o sistema de saúde, pois a “doença” assintomática já está curada e as pessoas já não devem poder infectar outras (ao contrário dos que têm o PCR positivo). Noutras paragens, mesmo aquelas donde costumamos copiar, os anticorpos não estão a servir para, isoladamente, contar como “doentes já recuperados” pessoas que sempre estiveram assintomáticas. Só se posteriormente tiverem um PCR positivo, já que teoricamente ainda podem ser infecciosas. 

“O importante, e que preocupa, é que os que estabelecem os critérios não se importem com a falta de uniformidade, não reconheçam a ausência de rigor científico e a falácia das respostas dadas quando inquiridos.”

O importante aqui não é São Vicente ter um caso ou três. Felizmente, o número não mudou muito. Mas se outros contactos tivessem apresentado anticorpos (e seria interessante saber o número total de testes feitos e que foram negativos), com este método de contagem aplicado exclusivamente a esta ilha, estaríamos fritos! O importante, e que preocupa, é que os que estabelecem os critérios não se importem com a falta de uniformidade, não reconheçam a ausência de rigor científico e a falácia das respostas dadas quando inquiridos. Se não mostrarmos um raciocínio lógico e consistente nas coisas pequenas, que garantias podemos dar de o fazer nas coisas grandes? Os princípios científicos e o rigor intelectual são para ser aplicados em tudo que diz respeito à ciência, para não dizer à vida. 

E é por isso que escrevo. Devo isso a mim mesma. Devo isso ao meu país. 

Médica e antiga Assistente da Faculdade de Medicina de Coimbra 

Sair da versão mobile