Silvia Almeida, conhecida por Silvia d’ nha Maré Fina, faz parte das primeiras mulheres de S. Nicolau que viajaram para Itália, com apoio do Padre Gesualdo, promotor da emigração cabo-verdiana para aquele país. Era uma jovem conhecida, loira e bonita, de pés descalços, como todos os filhos de pobreza daqueles tempos. Também era conhecida por sua simpatia e alegria. Contava anedotas e partidas. Emigrou em 1964 e nunca mais ouvimos falar dela. Quando a reencontramos já tinha 59 anos. Foi um encontro emocionante e inesquecível porque os anos passaram, mas o seu caráter não mudou. “Nunca me passou pela cabeça sair da minha ilha para ir à procura de uma vida melhor no estrangeiro”, disse Silva. Nessa altura, estava concentrada nos seus estudos para os exames em São Vicente, quando foi chamada de urgência à ilha de S. Nicolau, onde descobriu que o padrinho já tinha organizado a sua viagem, inclusive o passaporte, não obstante a sua resistência.
Por: Maria de Lourdes de Jesus
– Conta-nos um pouco da história de Silvia d’nha Fina?
– A minha vida começa em S. Vicente, onde fui concebida. Minha mãe, conhecida como Elisabete de nha Fina, foi trabalhar como empregada doméstica numa família muito importante nesta ilha. Naquele tempo muitos patrões, sem vergonha, aproveitavam das empregadas e não assumiam o próprio dever de pai. A minha mãe ficou grávida do seu patrão. Gente economicamente rica, mas sem moral, “uns miseráveis” mesmo. Não tendo outro abrigo e sem família, ela decidiu voltar “que mnine na ventre” para S. Nicolau, onde nasci. A nossa casa era de palha, com dois quartos e com uma esteira na tchon, como na maioria das casas da ilha, onde a pobreza morava e mandava. Estava situada na Passagem, na Vila da Ribeira Brava. Morava com a minha avó e a minha mãe.
Como todas as crianças tinha os meus deveres a fazer: ajudava em casa, ia fazer os recados, buscar água ali mesmo na Passagem e também brincava como todas as crianças. As pessoas diziam que eu era uma menina traquina, outras diziam que era runhinha. Tenho a consciência do meu comportamento e da maneira como me relacionava com os meus colegas e também com as pessoas adultas. Sabia responder e muito bem. “Resposta ê lá na pé de pergunta”.
– Antes da tua viagem para Itália vivias com o teu padrinho. Como era a tua nova família?
– Infelizmente, a minha mãe faleceu quando eu tinha 10 anos. Ela tinha apenas 33 anos. Fiquei a viver com a minha avó. Cinco anos depois perdi a minha avó. Foi para mim uma grande tragédia. Já era órfã de pai porque fazia parte dos “Fidj sem pai” e agora fiquei órfã de mãe e avó. Como mandava a tradição na altura, se os pais falecessem-se, o padrinho deveria responsabilizar-se pela educação da criança. Tinha nessa altura 15 anos. O meu padrinho tratava-me muito bem. Vivia com ele e a sua mãe Mãntonha. Depois de voltar da escola, ajudava-a nos trabalhos de casa, ia buscar água, fazer compras no mercado. Ia também apanhar goiaba na horta do meu padrinho e dar de comer às galinhas. Meu padrinho satisfez o meu desejo de prosseguir os estudos. Tinha o senhor Aníbal que dava aulas do Ciclo Preparatório a um grupo de alunos e no mês de Junho a gente ia fazer os exames em S. Vicente.”
– Qual é a imagem que trouxeste da ilha de São Nicolau para Itália?
– Vivíamos no período colonial. Nessa altura, a Vila da Ribeira Brava (não obstante muita pobreza) era muito activa: havia passeios que nhô padre Gesualdo organizava, teatro, cinema, feiras todos os anos, e dança no clube à tarde grátis para as crianças, antes de iniciar o baile para os adultos. Ainda as festas nas casas com picapada. As moças frequentavam o Orfanato na localidade de Caleijão, onde aprendiam a bordar e a coser. A noite de Lua cheia era para contar “história história, fartura de céu amém”. Havia também festas no Grémio para os grandes senhores e senhoras da ilha, numa linda casa com a fachada voltada para a praça principal da cidade, onde o povinho costumava admirar como os ricos se divertiam.
Sabia cantar muito bem e fui chamada para integrar o coro da Igreja, juntamente com todas as moças que vieram para Itália. Obra de nhô padre Gesualdo. Ele conhecia muito bem a nossa família, por isso era uma garantia para ele e as famílias italianas, onde a gente ia trabalhar. Tinha muitas amigas e quando me convidavam para ir as festas era às escondidas. Combinava com a Mãntonha, que me amava muito e cobria as minhas mentiras. Gostava imenso de dançar. Estava na moda twist e chá-chá-chá. Só parava quando era a hora de voltar para casa, antes de anoitecer. Jogava ao ringue no seminário, mas também saltava fion, como um rapaz. Diverti-me muito e fui feliz na minha ilha.
– Fale-nos um pouco da tua viagem para Itália”
– Estudava e o meu sonho era terminar o liceu e fazer um curso para ser enfermeira ou hospedeira de avião. Sobre isso não tinha nenhuma dúvida, até porque era uma boa aluna. Eu tinha cabeça para estudos. Mas não consegui impedir que o meu padrinho desistisse do projecto que tinha para a sua afilhada: uma emigração forçada. Obrigou-me a sair do meu país como se fosse uma deportada. Para mim foi uma grande traição da parte do meu padrinho.
Estava em São Vicente para os exames, regressei a S. Nicolau e, depois de alguns dias, arrumei a minha malinha com um chinelo, um de par de sapatos balé, dois vestidinhos, roupas íntimas e uma fotografia de Nossa Senhora do Socorro, a minha santa protetora, que estava pendurada na parede do meu quarto. Viajei para Itália juntamente com Lidia de Puna, mas ela não foi obrigada a emigrar, como no meu caso. Fomos no barco Ildu para a ilha do Sal apanhar um voo da TAP para Lisboa/Itália.