Mindel Brega

Por Rosário Luz

Acho que nunca me senti tão em casa fora de Cabo Verde como há uns anos, em Salvador da Bahia. À parte o exotismo linguístico e religioso, encontrei-me perante a cara do meu povo, as casas do meu povo, o gingar do meu povo, a preguiça do meu povo… E disse isso numa night, sentada entre um Baiano e um Paulista: que se fosse Brasileira, seria Baiana. O Paulista quase gritou: “Você tá louca? Você é moderna, sofisticada, viajada… você é Paulista, minha filha! Cê já VIU esse povinho daqui?” Ri-me e pensei “Sonsent ta matá! Baianas vestidas de Paulistas.” Ma era un vej. No more.

Moro na Praia e venho com frequência a Mindelo; contudo, tanto numa cidade como noutra, estou muito menos agarrada à farra do que fui no passado. Há muito que não tinha feito uma paródia.sv fora dos limites da família, do Carnaval ou do Mindelact; mas na sexta-feira passada, fui a uma festa pré-Entrudo que albergava todos e todas. O evento teve lugar num espaço do mainstream e acolheu gente dos 15 anos aos 60, de uma variedade de sexos, géneros, profissões e origens sociais, todos vestidos com suas roupas normais. Ou seja, permitiu-me, após um hiato, contactar, transversal e sociologicamente, o grau de sofisticação urbana vigente na night Mindelense contemporânea. Nossa. Tão devagar. Xoquei. 

Já me tinham chamado atenção para o fenómeno da decadência do estilo e do bom gosto.sv; mas rejeitei sumariamente a ideia porque simplesmente não coincidia com a minha memória. Lembro-me de 2008, o primeiro ano em que participei na FIC, como SG da Câmara de Comércio de Sotavento, a instituição anfitriã na cidade da Praia. Quando vim a Mindelo para a edição de 2009, reparei imediatamente na superior urbanidade da malta expo.sv. Nessa altura ainda saía bastante, tanto no Mindelo como na Praia; e esse desnível de urbanidade reproduzia-se na night. No more.

O Mindelo que vi na noite de sexta-feira tornou-se assustadoramente provinciano. E tendo em conta que o espírito fundador desta ilha é urbano, as implicações desse provincianismo são profundas: ele representa nada menos do que a renúncia da nossa essência existencial. E isso é, obviamente, muito mau.

No passado, a Bahia dominou a política, a economia, a academia.br; no presente, ainda é proprietária das mais sagradas tradições culturais do país e o locus do seu mais valioso património arquitectónico – razões pelas quais atrai multidões de turistas do mundo inteiro. O que é ainda mais significativo é que estas tradições – restos do seu passado de centralidade – permitem-lhe continuar a produzir multidões de pensadores e artistas do mais alto nível nacional e internacional. Mas os centros de decisão económica e financeira moveram-se para o Sul; o centro de decisão política moveu-se para Brasília; e o magnífico Estado da Bahia moveu-se irremediavelmente para a periferia do país – deixando a sua mulherada muito mal vestida.

Em inícios na década de 1960, quando a minha mãe foi estudar para Lisboa, o Porto Grande do Mindelo já se encontrava em franca decadência; ainda assim ela sentiu-se, disse-me, à frente das suas colegas.pt no que tocava música, literatura e moda. A informação vinda das grandes potências culturais Europeias e Americanas ainda era um dos bens de permuta em São Vicente – e circulava com relativa facilidade pela sociedade. A existência de capital comercial nativo à cidade, de uma indústria emergente, de um proletariado portuário independentemente assalariado e das instituições académicas mais avançadas do país tinham alimentado uma produção cultural autóctone notável, que nos dava ares de uma centralidade relativa. Já a sociedade Lisboeta – tacanha sob o isolamento de um Estado Novo moribundo – padecia de um provincianismo fulminante, mesmo sendo a metrópole da qual dependíamos. 

Em 2019, o Mindelo ainda é a mais bela cidade.cv; continua a produzir artistas e pensadores notáveis, e a exportá-los para o resto do país; e atrai cada vez mais turistas para a sua Baía, seus festivais e Carnavais. Mas o Nordeste do Brasil é a prova de que a tradição e o trânsito turístico não bastam para arrancar uma região da periferia económica – e muito menos política. O que dá centralidade a um local  é capital, autonomia de decisão – e a resultante capacidade de produção e retenção de elites económicas e culturais. São Vicente fica no Noroeste geográfico do país; mas ao longo das últimas décadas, transformou-se no seu Nordeste económico e cultural; num Nordeste simbólico.

No período colonial, o centro administrativo do território.cv ficava na cidade da Praia, o seu centro logístico e comercial ficava no Mindelo, e toda a província dependia igualmente da Metrópole. Com a Independência, tudo mudou: o poder decisório da nação agora soberana foi apropriado pela cidade da Praia, à revelia de todas as outras localidades do país – que se constituíram doravante em províncias da Capital. Porquê, por maldade? Não; por necessidade organizativa.

A Independência Nacional trouxe consigo uma transformação radical no desenho económico do país: a economia de Santiago deixou de ser agrária, a de São Vicente deixou de ser portuária, e todo o país passou a subsistir largamente da reciclagem de ajudas internacionais. Ora bem: se ajuda pública é o que sustenta a economia; e se a sua captação, contabilização e redistribuição é a principal atividade política… é óbvio que a capital do país – que centraliza, por definição, a atividade política – centralizará por acumulação o grosso da atividade económica.  

Com o passar do tempo, esta centralização originada na necessidade transformou-se numa cultura organizativa arreigada. Apesar dos discursos em contrário, o Estado.cv acabou por assumir plenamente que o poder governativo assenta na capacidade política de captação de ajudas. Sendo assim, o poder político passou a encarar toda a iniciativa privada de sucesso como uma ameaça à sua consolidação. Pois, se alguém não depende de um salário do Estado, esse alguém é independente em tudo o mais. E se o seu empreendimento cresce a ponto de empregar mais alguéns, aí então torna-se numa ameaça eleitoral; num alvo político a abater.

São Vicente sofre de forma exacerbada sob esta filosofia de governação porque deve a sua própria génese no investimento privado estrangeiro e na iniciativa privada nacional. Foi este o regime económico que formatou a sua sociedade e lhe impôs urbanidade. Mas a centralização agressiva, pelos sucessivos Governos.cv, do poder político e económico na cidade da Praia, destituiu progressivamente o Mindelo do seu capital financeiro, social  e intelectual. O resultado? A sua transmutação em periferia nacional.

Esta realização não é novidade. Há muito que eu e muitos outros alertamos para a marginalização política e económica.sv. O estado é de emergência e isso é evidente pelas estatísticas e pela experiência dos seus cidadãos; mas nada me fez sentir essa decadência na pele como as roupas, os sapatos e a generalidade da interface brega da mulherada nessa noite de sexta-feira. Por vezes, apareceram-me uma ou outra das garinas estilosas que foram sempre a marca da mulher.sv; mas não eram, como em outros tempos, a norma; e a verdade é que perdiam em urbanidade para as mulheres da Praia.

Pudera. A cidade da Praia não passa de uma periferia mundial; mas se um operador turístico quiser fazer um investimento no Sal, tem que processá-lo na Praia; se uma empresa.sv tem uma questão a resolver com as Finanças, é obrigada a deslocar-se à Praia. É na Praia que se encontram todas as instâncias de decisão política e económica – inclusive  as do poder municipal, que é financiado e gerido a partir de interesses partidários sedeados na Capital. Ou seja, a Praia centraliza quase todas as instituições capazes de empregar jovens executivas,  remunerá-las generosamente e ainda enviá-las em missões de serviço a Portugal, Espanha, Brasil e EUA – onde podem observar o que há de mais radical na moda internacional e adquiri-lo com Euros, Dólares e Reais retirados às generosas ajudas de custo. Naturalmente, quando essas mulheres saem na night, espalham moda por todo o lado.

Já as suas comparsas Mindelenses raramente têm a oportunidade de viajar para os ambientes sofisticados das conferências em Paris, com hotel cinco estrelas, ajudas de custo e visitas guiadas pela cidade. Quando viajam, é por conta própria; fazem-no uma vez por ano, com muita sorte; hospedam-se em casas de família; não vão a conferências nenhumas; fazem as suas compras sem ajudas de custo; e regressam algumas semanas depois a uma cidade onde NADA é decidido. Lixado.

E digo isto da elite; porque a mulher popular.sv encontra-se num patamar ainda mais removido da periferia nacional. O seu problema não é  a baixa qualidade de tecidos e acessórios; é a impossibilidade de encontrar um emprego que lhe permita viajar UMA vez sequer por conta própria; é a carência de cuidados de saúde e proteção social; é a carência de nutrição adequada; é a carência de oportunidades de educação e mobilidade para os seus filhos. E essas carências estão todas manifestas na sua pele cansada, nos seus dentes cariados e nas expressões endurecidas por uma vida de escolhas difíceis. Ou ausência delas.

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