Por Rosário Luz
Circula pela internet um vídeo que elege o Carnaval do Mindelo como o melhor de África. A julgar pelas outras amostras, não é que seja o melhor, é que não há comparação; e a necessidade da gestão profissionalizada de um evento desta dimensão é manifesta. Para além de exigências logísticas crescentes, a montagem do espetáculo padecia de um problema estrutural de sustentabilidade: os dinheiros públicos canalizados para a produção cobrem apenas uma porção mínima de um show que se tornou caro pra caramba; quem financia o grosso dos desfiles oficiais – o principal chamariz doméstico e turístico do evento – são as escolas, seus patrocinadores e seus foliões. O problema é que quem beneficia maioritariamente do negócio do Carnaval não é quem o financia; são os promotores de eventos, lojas, hotéis, restaurantes, táxis, artesãs e proprietárias de balói, que não investem um tostão no espetáculo.
Há anos que se fala na criação de uma entidade apta a corrigir a situação e representar os interesses comuns dos grupos carnavalescos: alargar as suas fontes de receitas, coordenar a logística dos eventos, promover o seu apelo turístico e gerir os seus aspetos mediáticos. O modelo de gestão inaugurado em 2019 resultou da fundação, pelos principais grupos carnavalescos.sv, da Liga Independente dos Grupos de Carnaval (LIGOC-SV); e da transferência de um conjunto de competências organizativas e financeiras da Câmara Municipal para a nova instituição.
É natural que a reconfiguração de um acontecimento tão central quanto os desfiles do Carnaval são para o Mindelo produza ansiedade na população; e é muito natural que desagrade algumas cliques com interesses sedimentados no status quo. Portanto, é natural que, ao longo do processo, sejamos bombardeados com blocos de lamentações: que o Karnaval.sv está a ser “descaracterizado”; que está “perder a originalidade”; que está a ser “brasilificado”.
Tendo assistido o evento, estou convencida de que isso ainda não aconteceu; e diria mais, acredito que não está em vésperas de acontecer. Não obstante, muita coisa, efetivamente, mudou; é imperativo refletirmos sobre o caráter dessas transformações – e a validade das lamentações. Quanto a mim, as que mais me preocuparam foram as que ouvi nas ruas – longe dos ruídos das direções.
Uma que me interessou em particular não foi articulada; mas ficou claramente demonstrada. Domingo, 3 de Março: acompanhei uns amigos ao estaleiro dos Mandinga de Rbera Bot. Muita animação, batukada largód, barzinhos faturando – e gente de Morada konsentrod. Os Mandingas já existiam na juventude do meu pai; mas eram um grupo suburbano, de expressão limitada, com fortes raízes territoriais e uma pronunciada ideologia contra-cultural. Agora, são o que está a dar; e dá gosto ver a malta “in” viajar da Kapital para desfilar, besuntada de negro, a partir de espaços urbanos e simbólicos que até há pouco tempo desconhecia. Em contrapartida, nota-se um certo desfalque, um esfriamento na afluência dos Mandinga “nativos” e originais.
Deveremos lamentar esta transformação? Eu não. Não sou Crioula apenas de alma e coração, sou Crioula de intelecto; sei que não há como travar transformações culturais numa sociedade viva; não há como resguardar a pureza de um costume; não há como impedir as sínteses entre Antigo e Moderno, Africano e Europeu, Morada e Fralda. E sei que nem devemos desejá-lo. O que começa como uma subcultura do contra – o Jazz, por exemplo – produzida por negros em barracões, pode acabar apropriado pela elite branca e elevado ao estatuto de erudição. Podemos entender este processo negativamente, como uma expropriação; ou positivamente, como uma expansão. Pessoalmente, entendo estas dinâmicas culturais simplesmente como inevitáveis; e acredito que compreendê-las é o essencial, porque é a única coisa que nos permite atuar no sentido de acontecerem da forma mais benigna possível.
Uma lamentação repetidamente articulada foi que o Carnaval transformou-se num artigo de luxo; num privilégio de quem pode pagar; que a LIGOC “privatizou” o Carnaval. Tudo isto pode ser resumido numa palavra: BANCADA. Acredito que o grande problema não tenha sido a sua existência, mas a sua gestão: as construções eram primitivas, feias, grandes demais, ocupavam de forma injusta a extensão do circuito e nunca deveriam ter sido montadas na Praça Nova; para além disso, eram ferozmente guardadas pelos efetivos mal encarados de uma empresa de segurança privada, que desfilavam como se fossem militares de elite. Por baixo das bancadas, só se viam as suas botas, passeando à altura das caras de quem não tinha entrada.
Os bilhetes para assistir os desfiles das bancadas custavam 500, 800 e 1000 CVE. Olhando de cima, os valores parecem razoáveis; mas numa ilha desempregada e estagnada, o povo faz as contas de forma diferente de gente economicamente realizada. Para assistir aos dois dias com os bilhetes mais baratos, uma família de cinco pessoas teria que desembolsar 5000 CVE. Para uma mãe-de-família, esse valor equivale a 50 KG de arroz; para um pai-sem-família, um bilhete de 500 equivale a dez grogues de balói, e ainda restam cem paus para uma bafa. Ou seja, sejam quais forem as prioridades de cada qual, estes valores constituem um rombo orçamental significativo para qualquer crioulo que não tenha a sorte de pertencer à classe média.
A verdade é que assistir aos desfiles sempre exigiu esforço; e esse facto foi sempre aceite. A cena que vimos na manhã de terça-feira – famílias com farnéis, bancos e guarda-sóis, assegurando desde cedo os melhores lugares free para espetáculo – existiu desde sempre. A novidade é a desigualdade: antes, todos.sv – exceto os poucos que moravam ao longo do circuito – tinham que dar algum expediente num bom lugar. Hoje, ver o show com conforto exige um esforço sobre-humano da maioria depauperada; enquanto a minoria endinheirada ocupa demasiado espaço – pelo qual paga aquilo que, para ela é, uma ninharia.
Mas, se o acesso à cultura nunca foi socialmente igualitário, porquê tanta lamentação? Porque, quando se trata de ópera, ballet e teatro, os shows não são propriedade popular; são produzidos por elites, para elites. Já o Carnaval.sv é um espetáculo produzido pelo povo, para o povo; e congrega financiadores de uma base transversal dos habitantes da ilha. Seria trágico se optasse por um modelo de gestão em que esse mesmo povo é secundarizado como audiência; arriscar-se-ia a perder as suas bases criativas e financeiras.
Na noite de segunda-feira, a multidão que não tinha bilhete para as bancadas avolumou-se perigosamente por baixo e por trás delas, numa massa humana compacta que impedia a circulação em qualquer sentido. Este cenário suscitou lamentações sérias e necessárias, que me foram articuladas por um ex-militar. Quando lhe perguntei o que nos aconteceria em caso de uma altercação ou de algum pânico, respondeu laconicamente: “Uma tragédia!” As bancadas não se limitaram a relegar os menos afluentes para uma zona de desconforto; relegaram-nos para uma zona de perigo; comprimiram-nos num perímetro de alto risco. E se as autoridades.cv permitem que o poder de compra de cada cidadão determine o nível de segurança pública a que tem direito, é porque o Carnaval realmente ascendeu a um novo patamar de desigualdade.
Mas, voltemos às ruas, e à principal lamentação contra a LIGOC-SV: a “privatização” do Carnaval. A sério? Há neste discurso uma confusão brutal entre o Carnaval e o desfile oficial; e todo o Mindelense consciente sabe que o Carnaval não se resume ao institucional. O Carnaval não é um desfile; é uma quadra, da qual o desfile é apenas UM aspeto – mormente o mais mediático. E, para a sociedade.sv, é uma quadra inviolável, que honra o espírito de paródia, fantasia e rebeldia da cidade. Por outras palavras, “Ninguen ta mandá na Karnaval”.
Aliás, apesar das lamentações, a assistência maciça na segunda e terça, e a afluência aos prémios na quarta-feira, provaram cabalmente que, mesmo vistos por detrás das bancadas, os desfiles ainda são propriedade plena do Pov de São Vicente. Não obstante, a Liga detém agora um poder desmedido para decidir sobre o seu desenho; e, fundamentalmente, tem o poder para arbitrar o acesso dos operadores.sv aos negócios da indústria carnavalesca. Sendo assim, será uma peça central na formulação das vontades, dos sentimentos e do futuro de toda a quadra.
Como qualquer instituição, a LIGOC sofrerá certamente as suas dores de crescimento; e, como qualquer organização, será vulnerável a tentativas de instrumentalização por interesses privados, que pretenderão usá-la para objetivos que não os professos na sua constituição. Mas, como vimos acima, o Carnaval.sv é sagrado para o povo que o produz; e este dificilmente permitirá a permanência de um modelo de gestão que mate as suas tradições. O que se pede é uma transformação benigna dessas tradições. De todo o modo, cá estaremos firmes em 25.02.2020 – os sentados nas bancadas e os em pé por detrás – para melhor dizer de nossa sentença.