A “Superstar”

Terminado o campeonato nacional de futebol, sugiro-lhe que leia este artigo como se hoje fosse 6ª Feira, 26 de Maio passado, dia em que o escrevi quando o campeonato ainda ia a meio, dia imediatamente a seguir ao programa de Grande Reportagem da TCV de 5ª Feira, 25 de Maio.

Por: José Manuel Araújo

Ouve-se sempre dizer que o desporto é uma escola de valores e virtudes que garantem a formação e a colheita de grandes homens no amanhã. Mas como materializar esta e outras nobres missões, com uma Televisão de Cabo-Verde assumindo-se explícita e vigorosamente como uma escola de práticas condenáveis?

Na primeira jornada do Nacional de futebol, um cabrer mostrou-se-me um pouco agastado com o fato de, no seu entender, a TCV ter transferido o protagonismo da vitória da Juventude, estreante nestas lides, para a derrota dos Travadores.

E na jornada seguinte, a tónica da notícia não foi a vitória do Mindelense sobre o Travadores mas sim, a derrota deste. O protagonista da notícia foi, de novo, o Travadores. A equipa que segundo uma outra propaganda atual da comunicação social, depois de vencer a taça de Santiago Sul, NUNCA MAIS PAROU DE GANHAR.

Ninguém suspeitará que esse “NUNCA MAIS…” se refere a uma taça de cabo-verde ganha em casa, sobre o Santo Crucifixo (julgo) e uma super taça ganha num empate com a Académica do Mindelo, desempatado na marcação de penalties.

Mas, se uma vitória numa taça e numa supertaça é o que há de mais comum, que motivo então estará por trás desta forçada originalidade em destacar assim estrodosamente o Travadores, não só fora do momento, porque a taça e a super taça já tinham tido o seu momento e a sua notícia, como também, fora de contexto, se considerarmos que estamos em contexto do campeonato deste ano e não da taça do ano passado?

E a pergunta que não se cala é: este campeonato nacional desta época 2022/23, nalgum momento irá encontrar espaço para poder respirar, livre da sombra da taça de Cabo-Verde da época passada mas, que à viva força quer diariamente manter o Travadores como principal manchete das notícias também nesta época?

De tanto presenciar a insistência quase irracional neste tipo de processos e iniciativas de desinformação para a formatação de verdades inexistentes que justifiquem o inaceitável, rapidamente adivinhei todo este rebuliço noticioso construído à volta da presença do Travadores no campeonato nacional, como a ante-câmera duma pretensão qualquer ainda maior ou mais elaborada que pudesse estar na forja, algures na mente de alguém, um procedimento também já muito usual na TCV. 

Entretanto, o que ninguém, nem mesmo os mais atentos, poderia suspeitar, era que a TCV estivesse a cogitar a produção duma grande reportagem intitulada, “TRAVADORES, UMA JORNADA DE VITÓRIA – 20 anos depois”, para vender à juventude que não sabe do passado, ou a um despreparado sem a quarta classe que não sabe do futuro, qual fénix renascida das próprias cinzas, que assim se registaria para a posteridade.

Neste mesmo campeonato no qual a Sanjoanense também já levava 20 anos sem pôr os pés, não se compreende porque é que o fraco nível do Travadores é motivo de grande animação a culminar em grande reportagem e, na mesma situação, com a Sanjoanense nada acontece.

Pode-se argumentar com o fato do Travadores ter, em tempos idos, sido campeão de Cabo-Verde e a Sanjoanense não.

Entretanto, se é por aí que vamos, seremos confrontados de novo com outro paradoxo.

Para além da Sanjoanense, também estamos perante a presença de duas das três maiores equipas do futebol cabo-verdeano, que, com essa grande reportagem, perdem espaço na memória coletiva cabo-verdeana a favor do Travadores. Os não agraciados, Mindelense, destacadamente primeiro com mais de 20 títulos nacionais e Académica do Mindelo, terceiro da hierarquia nacional com 5 títulos.

E, se o frágil móbil arranjado para dar guarida a uma tão extemporânea Grande Reportagem, foi o de um regresso em apoteose dum gigante após uma longa ausência dos grandes palcos, o que de fato não aconteceu com a Sanjoanense, dois aspetos entretanto nos interpelam:

(Iº) esse móbil foi claramente manipulado e forçado pois, com o campeonato ainda a meio (25 de Maio), e o Travadores já com mais duas derrotas às costas (Juventude e Mindelense) depois de 20 anos de fraco desempenho, as duas últimas vitórias sobre o Santo Crucifixo não seriam motivo com peso suficiente para tanta propaganda à volta duma equipa. (IIº) E aqui valeria equacionar se a Académica do Mindelo, equipa com um maior palmarés que o Travadores no futebol nacional, não teria também passado por um longo período de recesso; a que pôs fim no ano transato, aí sim em verdadeira apoteose ao conquistar o título maior de Cabo-verde pela quinta vez; se não seria este, sim, o legítimo motivo para se preocupar com uma grande reportagem sobre a GRANDE JORNADA DE VITÓRIA da Académica do Mindelo, de que a TCV, como de hábito se distrai e se omite.

É que se não valer nenhum desses exemplos, teremos então chegado ao ponto mais baixo e despudorado duma TCV, que escolhe o pleno desenrolar do campeonato, precisamente a semana da véspera do jogo Mindelense X Travadores, para exibir uma grande reportagem que anima as hostes do Travadores para o jogo, no mesmo ato em que apaga as consciências de todos os cabo-verdeanos mais desprevenidos. Uma grande reportagem que nas vésperas dum jogo, glorifica e fortifica animicamente uma das equipas perante a outra e do nada, fabrica uma superstar para o futebol caboverdeano.

Ressalvem-se os jornalistas Neves (Benvindo e Elvis), que, com o fair play e

profissionalismo que se lhes reconhecem, talvez até inconscientemente, vêm remando contra esta maré de indignificação da imagem da instituição mas, que do modo como a montante as coisas já vêm embrulhadas, fica difícil para quem dá a cara.

Que “grande jornada de vitória” é essa, que atropela as outras equipas durante o desenrolar dum campeonato nacional, como se fossem inimigas a abater?

Reconheçamos antes de mais que isto ultrapassa um assunto só do futebol. Como povo, como comunidade de valores, nós nos alimentamos do que é nosso e nos formata enquanto povo. Do Mindelense, da Académica, do Dérby, e de entre muitas outras instituições e figuras de proa do universo caboverdeano, que nos identificam, orgulham e engrandecem como sãovicentinos/cabo-verdeanos.

Não se pode continuar a brincar assim com os mindelenses. Não podemos continuar impávidos e serenos a ver as coisas de S.Vicente, a serem desvalorizadas e empurradas para trás.

Os intelectuais ou a classe média de S.Vicente, a séria, claro, se apercebem que a grandeza de S.Vicente está em tudo isto? No futebol, no carnaval, no Bana, no B’Leza, no nhô Rôque, na baía do Porto Grande, e etc e etc? E que é precisamente esta grandeza, a escolhida para ser diariamente e militantemente, subtilmente ou descarada e desrespeitosamente, atacada pela TCV?

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