A lei que regulamenta a pesca de mergulho comercial aprovada pelo Governo deixou a comunidade cientifica cabo-verdiana em ebulição. O nível de indignação é tanto que biólogos, por exemplo, chegam a considerar o decreto-regulamentar uma “bofetada” aos mais de vinte anos de conservação do ambiente marinho em Cabo Verde. A Biosfera I, pela voz de Tommy Melo, vai ao ponto de afirmar que esse decreto é a maior irresponsabilidade cometida por um governo em Cabo Verde. Isto porque, justifica em entrevista à TCV, foi publicado sem se criar regras para salvaguardar as espécies.
Na perspectiva de outros cientistas nacionais, o Executivo nada mais fez que legalizar a depradação dos recursos marinhos no arquipélago, navegando literalmente contra a corrente mundial, que vai no sentido de se acabar com a caça submarina comercial.
Segundo o biólogo marinho Rui Freitas, o Governo procurou aprovar uma lei com objectivos eleitorais, mas que vai custar caro ao país. O regulamento, enfatiza, parece ter vindo dum planeta muito distante e que nem existe no presente século.
“Lamentavelmente apresenta ‘coisas estranhas’, outras até ‘ambíguas’, que podem estar igualmente longe da nossa presente realidade, inatingíveis na conjuntura pela prática, quer administrativamente quer geograficamente”, comenta esse professor universitário. A seu ver, a lei deixou enormes pedras soltas, que até convidam e incentivam ao extermínio não legalizado dos recursos costeiros. Neste particular apoia-se no estipulado no artigo 23, uma norma transitória que fixa o prazo de 180 dias à data da entrada em vigor da lei para os mergulhadores regularizarem a sua actividade com base nos requisitos de licenciamento previstos no diploma. Para Freitas, esse período de meio ano será certamente aproveitado para caçarem aquilo que quiserem e sem qualquer fiscalização.
Em mensagens a que o Mindelinsite teve acesso, os especialistas nacionais remam no mesmo sentido. Todos contra a lei. Como enfatiza um deles, se os recifes costeiros de Cabo Verde estão mal, agora não vai sobrar nem pedras. “… e os acidentes vão aumentar exponencialmente… é triste.”
“Como é possível que o Governo de Cabo Verde tenha aprovado uma lei que dá licença aos mergulhadores com garrafa armados com espingardas e bicheiros para massacrar os nossos recursos marinhos??? Qual é a chance que têm os peixes/moluscos/crustáceos de se protegerem contra estes pistoleiros e saqueadores??? Que motivo tem o Governo para desenvolver e aprovar uma lei contra o mar… contra o ambiente??? ”, pergunta um dos intervenientes, para quem a lei é própria de um país pobre em termos morais e de sensibilidade ambiental.
A lei
Enfatiza o legislador que a pesca de mergulho, em apneia ou com recurso aos meios de respiração artificial, tem sido cada vez mais uma evidência nas águas marítimas nacionais, deparando-se, no entanto, com uma ausência de regulamentação legal. “Ademais, a exploração de espécies de profundidade como o pepino do mar, o búzio cabra ou até mesmo a lagosta costeira, requer a utilização de meios de respiração artificial, pelo que a sua regulamentação se faz necessária”, justifica, lembrando que o mergulho em apneia carece igualmente de regulamentação, na medida em que é cada vez mais uma atividade comercial dos pescadores.
O acesso à pesca de mergulho comercial, conforme a lei, está sujeito a uma licença de pesca emitida pelo departamento governamental responsável pela Administração das Pescas e Aquacultura, bem como pela articulação dos processos de investigação, valorização e exploração sustentável dos recursos marinhos de Cabo Verde. A licença, que é emitida a favor do mergulhador e apenas para nacionais, tem a duração de três meses, podendo ser renovada por iguais e sucessivos períodos.
Para o efeito, o beneficiário tem de estar inscrito no Registo Nacional de Pescadores Mergulhadores, possuir um certificado do curso de mergulhador-amador, atestado médico e ter um contrato de seguro que cubra os riscos de acidentes pessoais. Para o mergulho autónomo, o pescador pode usar, entre outros equipamentos de caça e proteção, garrafa de ar comprimido devidamente certificada.
No caso da pesca em apneia, sem recurso a garrafa de ar, o peso total das capturas diárias não pode, no seu conjunto, exceder os vinte quilogramas por pescador mergulhador. No entanto, não é contabilizado para o efeito o exemplar de maior peso. “Quando a bordo de uma embarcação auxiliar existam mais de três pescadores mergulhadores, o limite total das capturas não pode exceder os setenta quilogramas, não sendo contabilizado para o efeito o exemplar de maior peso para cada pescador mergulhador”, acrescenta o diploma, que estabelece ainda que a atividade deve parar quando tenha sido atingido o peso máximo exigido.
A lei impede a captura em áreas protegidas e estabelece pontos de controlo. Mas, para os cientistas, levar isso à prática são outros quinhentos, quando se sabe das deficiências da fiscalização em Cabo Verde. E, no caso de pesca submarina, acrescentam, fica muito mais difícil controlar o que os mergulhadores apanham e a quantidade.
Refira-se que o ministério da Economia Marítima considera a partir de agora as capturas do pepino-do-mar, do búzio-cabra e outras espécies serão controladas como forma de se preservar a sua sustentabilidade.