O músico Morgadim foi surpreendido com a inauguração de uma sala dedicada à sua obra no Palácio do Povo. Num momento de despedida preparado pela associação Julia Life e a exposição Akuaba, o compositor foi chamado para descerrar uma pintura da autoria do artista plástico Miguel Levy e de uma moldura com o seu trompete Yamaha adquirido há mais de 20 anos, com o qual gravou o disco “Um kriol na França”.
Por enquanto, o espaço contém apenas esses dois itens, mas Carlos Zé, dono da exposição permanente Akuaba no Palácio do Povo, espera enriquecer a sala com outros objectos icónicos desse ex-trompetista do Voz de Cabo Verde, um deles o fato usado por Morgadim nas digressões internacionais feitas pelo grupo.
“Morgadim é um homem extraordinário, que fez parte da minha vida desde a minha infância e nada como honrar a sua trajectória artística. A vida proporcionou-me a oportunidade de criar a exposição Akuaba e decidi logo que o meu tio merecia ter o seu espaço próprio. Encomendei um quadro dele ao pintor Miguel Levy e, entretanto, ele telefonou-me e perguntou-me se eu aceitaria ficar com o seu trompete. Claro que aceitei de imediato e achei que o instrumento merecia estar patente ao público num espaço condigno”, explica Carlos Zé, sobrinho do artista, que se autodefine como o guardião dessa memória, e não dono das relíquias.
O trompete, com o qual Morgadim gravou a famosa morna “Traiçoeira de Dacar”, foi emoldurado num quadro com um sistema de iluminação que enaltece a cor doirada do instrumento. Algo que agradou os convidados presentes na inauguração, dentre os quais se destacam os artistas Toi d’Bibia, Chico Serra, Nolito e Humbertona.
Misto de sentimentos
Ver o trompete “enclausurado” deixou triste o baixista Nolito. Há anos que este músico tem acompanhado Morgadim nas suas actuações, pelo que, para ele, é difícil aceitar que nunca mais irá escutar o som desse instrumento num palco.
“Ao mesmo tempo sinto-me feliz por ter tido a sorte de conviver todos estes anos de perto com Morgadim, um artista que fez parte da minha vida desde criança, de tanto ouvir as músicas do Voz de Cabo Verde. Agora o trompete está fechado e exposto como que a marcar o fim de um ciclo”, diz Nolito, que entende a decisão de Morgadim de deixar de tocar trompete, um instrumento que exige fôlego. “Tocar trompete não é como tocar violão.”
Amigo de Morgadim desde o tempo de Voz de Cabo Verde, Chico Serra afirma que tem uma grande consideração pelo compositor, pois, enfatiza, foi graças a ele que teve a oportunidade de integrar o emblemático agrupamento musical. Hoje, diz, sabe que o trompete Yamaha foi descansar, mas resta-lhe a satisfação de continuar a ouvir os solos de Morgadim graças a uma excelente gravação de um concerto que deram na cidade da Praia.
Adeus à cidade do Mindelo
Morgadim confessou ao Mindelinsite que, ao oferecer o seu trompete, está a colocar um ponto final na sua carreira enquanto intérprete, mas não como compositor. Segundo este artista, ter ficado quase dois anos sem tocar por causa da pandemia reduziu drasticamente a sua capacidade para tocar trompete.
“A quando de uma homenagem feita pelo grupo Serenata para celebrar os meus 90 anos de idade decidi que teria que tocar algo. Mas, ao tentar fazer escala, dei-me conta de que não conseguia. Cheguei nesse dia à conclusão que já não podia continuar a tocar trompete. Assumi as minhas limitações humanas porque já tenho 90 anos e estou a perder aquela energia necessária para tocar e sentir aquela motivação em palco”, confessa o artista.
Deste modo, Morgadim decidiu também “reformar” o seu trompete, um companheiro de longa data e, diz, de uma qualidade extraordinária. O compositor de “Cabo Verde d’one 2000” optou por confiar a guarda do instrumento ao sobrinho Carlos Zé. Segundo Morgadim, aos poucos vai sentir o afastamento do seu velho companheiro dos palcos, mas mostra-se satisfeito com a forma como o instrumento está a ser usado, exposto numa sala condigna.
Morgadim confirmou ao Mindelinsite que não tenciona regressar a Cabo Verde, e à “amada” cidade do Mindelo, devido a sua idade e aos problemas de saúde. Confessa que está a sentir o peso da idade e que deve aceitar esse facto. “Aproveito para agradecer esta maravilhosa cidade do Mindelo, onde cresci e fiz a minha juventude e as minhas primeiras formações. Devo a minha vida como homem e artística à cidade do Mindelo”, afirma o músico nascido em S. Nicolau.
Para demonstrar esse afecto e reconhecimento, Morgadim preparou uma música intitulada “Mindel d’outrora, Mindel d’agora”. Este trabalho, diz, começou a ser feito há cinco anos e está pronto para ser gravado. Essa era a sua intenção, mas foi obrigado a cancelar a gravação devido aos problemas de saúde. A música, acrescenta, deve ser interpretada por cinco vozes e promete enviar as partituras ao cuidado do seu filho Carlos Feliciano, que reside na cidade do Mindelo, para que seja gravada quando chegar o momento próprio.