O artista Djan Neguin conseguiu inquietar o público que se deslocou na noite de quarta-feira ao Centro Cultural para assistir a peça teatral da sua autoria, inspirado no pensamento de Amílcar Cabral. Durante mais de uma hora, o artista, sem proferir uma única palavra, fez uma leitura pessoal sobre o trabalho, o pensamento e as acções de Cabral, num diálogo com o seu tempo, ou seja com recurso a sons e imagens produzidos pela inteligência artificial, ao mesmo tempo em que, do seu ponto de vista, está-se a beira de um abismo ambiental.
Este é um espetáculo que exige a máxima atenção para que se possa apreender as intenções do artista e criador. Em determinados momentos, viu-se um Cabral empenhado na luta pela independência de Cabo Verde e da Guiné Bissau, mas também irónico e sarcástico, sobretudo durante o diálogo com Salazar. Djam Neguin explicou que, artisticamente, interessa-lhe a subjetividade, ou seja, o que se pode trazer para a sua vivência, o seu olhar.‘Cada artista, cada pessoa tem uma forma de ver e explicar as coisas. Por isso, começo a brincar com o título Ami.lCar, que diz o que penso de e com Cabral. É A minha leitura sobre o seu trabalho, pensamento e ações, num diálogo com o meu tempo, onde estamos no meio de um grande desenvolvimento tecnológico e, ao mesmo tempo, à beira de um abismo ambiental. Como falar da arte num mundo a arder e cada vez mais fragmentado’, interroga Djam Neguin.
Questionado sobre os objectivos por detrás da performance, o artista admite que são vários, sendo o primeiro a experiência. Djam Neguim destaca, entretanto, o poder do teatro, de trazer pessoas para um pacto de silêncio e a capacidade do público de fazer as mais diversas interpretações.‘Quero causar uma experiência, um pensamento, uma inquietação, mesmo que não seja muito claro. Penso que se calhar é este o lugar da arte. Trazer algo novo ou então colocar em xeque tudo aquilo que não conseguimos nomear. E então saímos com uma sensação de desconcerto. É um lugar interessante.’
Relativamente ao cenário composto por duas cadeiras, este deixa a interpretação ao critério das pessoas, até porque, afirma, não gosta de revelar as suas reais intenções. Admite, no entanto, que gosta de brincar com a ideia do corpo presente e do corpo ausente, o virtual e o real. ‘Ao mesmo tempo que parecia que o Amílcar Cabral estava lá, também não estava. É brincar com a dualidade e com identidade. Saber em que momento era Cabral, em que momento era Salazar ou outra pessoa qualquer. Houve, por isso, um apagamento da minha identidade facial. Brinco com esta capacidade que hoje temos de criar diversas identidades, avatares diferentes, filtros diferentes. Estamos constantemente a editar fotos. É também um pouco sobre isso. Por isso temos esta estética do vídeo porque estamos cada vez mais imersos em telas, e toda a comunicação passa pela imagem.’
Para além das cadeiras, Djam Neguin destaca também o uso de alguns acessórios, caso por exemplo de uma cabeça, que se move como parte de um corpo, que não fala mas ao mesmo tempo dá esta ideia. Outro propósito, defende, é que apesar de se estarmos a viver numa era tecnológica, a cabeça reflete o apego aos objectos, caso dos microfones, tablets e computadores. Para este artista, a cabeça brinca com a ideia de que as pessoas ainda reféns de objectos. E tudo isso sem uma única palavra durante todo o espetáculo. ‘Acredito muito na força do movimento, da presença em cena, do gesto. No último espetáculo que fiz escreveram que era uma dança. Mas concordo que é porque os movimentos são coreografados. Acho que é também do lugar de onde venho. Tenho uma trajetória na dança e isso faz com que a construção da performance parte de um pensamento coreográfico,’ sublinha.
Mas, mesmo sem palavras, Djam Neguin acredita que o público entende a mensagem, através dos movimentos, dos avatares e dos hologramas. Reconhece, no entanto, que em cada lugar onde a peça é apresentada seja em Portugal, no Brasil, em Cabo Verde ou Guiné Bissau as reações são diferentes.
Para o director do CCM, esta é uma peça muito performática, que aborda o pensamento de Amílcar Cabral sob o olhar de uma geração que não tem memória deste período. E este deve ser o ponto de partida para ver e analisar o espectáculo, refere. ‘O artista fez a sua análise a partir de um certo olhar televisivo, imagético, como se fosse um jogo de video-game. Utilizou muita inteligência artificial para recriar a história. Mesmo assim, reconhecemos a nossa história porque consegue fazer pontes inteligentes entre os vários elementos que dão segmento na sua narrativa visual e plástica “, avalia.
Para isso, prossegue António Tavares, o artista deixa várias pistas para cada pessoa fazer a sua própria ilação. ‘Esta é uma geração que está muito ligada às tecnologias. E acaba por trazer Amílcar Cabral para o seu mundo. Renova de uma forma impressionante o pensamento de Cabral. A plástica, a imagética estão lá. Cada vez mais sentimos que Amílcar Cabral interessa a nova geração. Hoje podemos dizer que Cabral é uma ciência política, social e humanística, para além da coisa política.’
O espectáculo será apresentado amanhã, sexta-feira, dia 20, na Cidade da Praia.