Any Delgado, activista cultural e mentora do projecto “Orgulho Nacional”, acredita que a nova geração está a perder a sua identidade cabo-verdiana. Esta jovem, que se identifica com a diáspora, entende que, para se colmatar esta “falha grave”, torna-se necessário definir uma estratégia adequada, que deve passar por uma “educação de raiz”. Esta emigrante critica ainda aquilo que chamou de “perseguição” da parte do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas que, de acordo com Any Delgado, insiste em ignorar o trabalho que tem realizado em prol do desenvolvimento de Cabo Verde no seu todo.
Por: João A. do Rosário
Mindel Insite – Tem sido incansável na divulgação dos artistas com enfoque nos menos conhecidos. Ajude-nos a perceber quem é a Any Delgado…
Any Delgado – Sou uma mulher comum, māe babada de quatro filhos, os meus maiores orgulhos. Uma mulher que luta com monstros e dragões com coragem de heroína, mas, à noite, quando as luzes se apagam, recolhe-se à sua fragilidade, no silêncio da almofada. O sol nasce e a história repete-se. Quem me conhece sabe que é isso que sou, uma mãe e chefe de família, o resto são rótulos. Nasci em Cabo Verde, na cidade do Mindelo, vim muito nova para Portugal, em 1973, e com apenas um ano e meio de idade. Há três vivo em Den Haag – Haia, nos países baixos, antiga Holanda.
MI – Atualmente quais são os maiores desafios traçados por si?
AD – Estou envolvida em alguns projectos na Diáspora ligados à nossa cultura e devo informar que brevemente serāo revelados. Dinamizar o projecto “Orgulho Nacional”, para além das publicações nas redes sociais, continuar com os directos do “Morna com stória” e enveredar por um formato mais profissional são metas e objectivos a atingir num curto prazo. E finalmente devo dizer que já comecei a escrever o meu primeiro livro. Esta obra será sobre o “orgulho nacional”, para que sejam salvaguardadas algumas informações existentes.
MI – Como disse, demonstra um grande interesse pela cultura. De onde e como surgiu esse gosto por esta área muito importante para o desenvolvimento de Cabo Verde?
AD – Sempre fui muito orgulhosa das minhas raízes. Os meus pais souberam incutir-me o respeito por Cabo Verde e por todos os símbolos que caracterizam a cabo-verdianidade. Desde que comecei a estudar e a pesquisar sobre a Morna este gosto foi crescendo sem parar.
MI – No seu entendimento, como considera a importância da cultura ou da música cabo-verdiana na integração das comunidades da diáspora nos países de acolhimento?
AD – O cabo-verdiano é feito de música. A partir do momento que emigra, a alma transborda de saudade. A música dá-lhe alento, as letras e as melodias fazem-no viajar nas suas memórias, a gastronomia, o convívio com outros cabo-verdianos, o crioulo, tudo isso traz-lhe por momentos a Morabeza.
MI – Como vê o estado atual da cultura e da música de Cabo Verde no mundo?
AD – Acho que a nova geração está a perder a sua identidade. É preciso definir uma estratégia para colmatar essa falha. A cultura é tudo o que caracteriza um povo, desde os seus hábitos às expressões artísticas, entre elas a música. É preciso uma educação de raiz. Em relação à música de Cabo Verde digo que ela ganhou maior notoriedade no ano passado e nāo foi só com a Morna. O Batuku também atingiu outra dimensão ao ser incluído nos ritmos do último trabalho da Madonna, principalmente quando ela convida músicos e batucadeiras para uma tournée mundial.
“O cabo-verdiano é feito de música. A partir do momento que emigra a alma transborda de saudade. A música dá-lhe alento, as letras e as melodias fazem-no viajar nas suas memórias…“
MI – Acha que a música e os seus protagonistas têm tido o devido apoio naquilo que merecem ter?
AD – Nāo. Têm sido dados passos significativos, mas existe muito trabalho por fazer.
“Morna, essência, ausência, sodade…”
MI – A Morna para ti significa especificamente o quê?
AD – Essência, sentimentos, ausência, emigração, sodade… cabo-verdianidade.
MI – Os compositores muitas vezes são esquecidos mas, no seu entendimento, o que é necessário fazer-se para os melhor valorizar?
AD – Em primeiro lugar respeitar os direitos autorais e a propriedade intelectual. Temos grandes trovadores em Cabo Verde. Poemas perfeitamente musicadas. Identificar o criador de uma obra é um direito moral. Há o erro de só valorizar quem canta esquecendo-se de que a magia é feita por aquele que deu de si mesmo ao compor a melodia. Cabe também às rádios, principalmente às rádios comunitárias, agentes, promotores e até os intérpretes, serem os primeiros a fazer esse reconhecimento.
“O MCIC nunca apoiou um projecto meu”
MI – Enquanto ativista cultural qual o seu relacionamento com o Ministério da Cultura e das Indústria Criativas?
AD – Não temos nenhum relacionamento…; nunca se dignou a apoiar qualquer projecto meu.
MI – Já alguma vez submeteu projectos ao MCIC e não foram atendidos?
AD – Sim, por dois anos consecutivos. No primeiro ano o projecto entrou após a data do término do prazo das candidaturas. Voltei a submeter o projecto no ano passado, dentro do prazo, mas nāo houve qualquer resposta do Ministério. Desde que iniciei esta cruzada tive apenas uma autorização de usar o logotipo da candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade e um apoio técnico que não sei o que é, embora tenha questionado por email que me esclarecessem os aspectos deste apoio. É escusado dizer que continuo à espera de resposta.
No ano passado fui convidada pela FNAC-Portugal para organizar uma quinzena de Morna, a começar pela loja de Almada, podendo estender-se a todas as lojas, de norte a sul do país e ilhas. Enviei vários emails ao Ministério da Cultura, todos sem qualquer resposta. Expliquei a importância do convite. Mostrei que a Fnac poderia dinamizar a candidatura, o que aconteceu. Era possível envolver todas as áreas da Cultura nas lojas: literatura, música, exposições…pedi ao Ministério que abrisse pontes entre as livrarias, autores, editoras e artistas plásticos, para “caboverdianizármos” as lojas durante a quinzena. Nunca recebi resposta, nem nunca houve interesse de quem de direito. Consegui organizar o evento com sucesso. Levámos Cabo Verde e a morna no coração. Muitos artistas estiveram presente. Nomes como Tito Paris, Teté Alhinho, Marino Silva, Dany Silva, Kiki Lima, Tibau, entre outros…Dessa altura tenho de agradecer a Embaixada de Cabo Verde em Lisboa, que cederam uma exposição itinerante sobre a morna e houve responsáveis presente todos dias, e agradecer ao empresário Luis Fortes por todo o apoio em todo o percurso. Até hoje o Ministério da Cultura de Cabo Verde nāo se pronunciou.
MI – Considera a atitude do Ministério em não considerar os teus projectos como uma forma de perseguição?
AD – Sempre senti muita resistência da parte do Ministério da Cultura relativamente a qualquer assunto que tenha a minha assinatura. Raramente existiu respostas aos meus emails. Sempre fizeram vista grossa ao meu trabalho, apesar do meu nome ser conhecido e reconhecido entre a comunidade caboverdiana na Diáspora e local, e entre muitos portugueses. Há nitidamente uma posição hostil contra o projecto “Orgulho Nacional” e a minha pessoa.
“Há nitidamente uma posição hostil contra o projecto ‘Orgulho Nacional’ e a minha pessoa.“
MI – Tem alguma quezilha pessoal com o Ministro da Cultura?
AD – Da minha parte nāo…; nāo o conheço o suficiente para chegar a esse ponto, mas não sou de bajular ou de falsear comportamentos. Mantenho a cabeça erguida e luto para conquistar o meu lugar, por mérito. Mas, às vezes, sinto-me cansada e pondero deixar de remar contra a maré e desistir de tudo.
MI – O que mais a entristeceu na sua vida?
AD – Muitas coisas me entristecem. Há, no entanto, um episódio no ano passado, que arrasou a minha confiança e fez-me duvidar da importância do projeto Orgulho Nacional. Depois da classificação da Morna a Património Imaterial da Humanidade fui convidada a discursar num evento no Consulado de CV em Roterdam, a seguir ao Ministro da Cultura de Cabo Verde. No momento que anunciam o meu nome, o Sr. Ministro levantou-se para ir ao WC, que ficava dentro da sala. Podíamos ouvir todos os sons, desde o autoclismo à lavagem das māos…; uma quebra indecorosa do protocolo e um total desrespeito por mim, a única senhora na mesa. Nāo é preciso ser detentor de um cargo público para saber que é inaceitável uma atitude igual. Nesse momento senti um misto de tristeza, mágoa e decepçāo.
MI – Como viu esse acto?
AD – O acto foi de desvalorização. Causou instabilidade. Recordo-me de ter olhado o meu discurso e ter pensado “para quê?”. Abreviei o que tinha para dizer. Mantive a minha elegância e educação até ao fim. Até fiz uma chalaça, convidando o Ministro a voltar a ocupar o seu lugar porque, depois de todo este momento caricato, o Ministro ficou de pé à porta do WC. Nessa altura eu já estava a dar sinais de esgotamento. O meu cérebro já nāo tinha forças para reagir. Semanas depois tive um episódio clínico que obrigou-me a parar todas as minhas actividades profissionais durante alguns meses.
MI – Os melhores momentos?
AD – O nascimento dos meus filhos, ter ido ao Marquês de Pombal na última vez que o Sporting foi campeão, o encontro com a metade de mim e a elevação da Morna a Património Imaterial da Humanidade.