Nóia Morais despede-se do Carnaval de São Vicente com muita mágoa e esmagado por “coisas estranhas”

Fernando “Nóia” Morais é um dos maiores carnavalescos de São Vicente. Já trabalhou com todos os grupos que existiram e que existe nesta ilha e apresentou desfiles grandiosos que ficaram na memória dos mindelenses, tendo sido campeão com os grupos Maravilhas do Espaço, Vindos do Oriente e Cruzeiros do Norte. Mas o entusiasmo e paixão estão a ser esmagados por “coisas estranhas ao Carnaval”, o que o levou a anunciar na sua pagina no facebook a sua “aposentadoria”. Nóia não especifica as razões para esta decisão radical, limita-se a dizer que “uma última gota fez transbordar o copo (paciência), pelo que entendeu que o melhor é afastar. 

Conhecido por sua criatividade e imaginação sem limites, a história de Nóia confunde-se com a do Carnaval de São Vicente nas últimas décadas. Em entrevista ao Mindelinsite, o carnavalesco revela que começou a fazer enredos de carnaval ainda criança. “Fui levado por ‘Nhô Doi” para o Vindos do Oriente ainda era muito novo. Estudava terceira classe. Ao que tudo indica, fui levado para substituir alguém que era responsável por fazer os desenhos e que faltava muito. Nhô Doi teve de pedir autorização da minha família para que eu pudesse trabalhar nos estaleiros. Acabei por gostar e fiquei. Nunca mais fiquei de fora do Carnaval”, explica. 

Confecção de carro alegórico do VO 2020

Desde então fez de tudo dentro dos estaleiros de Carnaval, desde desenho de figurinos,  trabalhos de ferragem, pinturas, moldagem, de entre outros. Paralelamente, foi transitando pelos grupos existentes e outros que já desapareceram. “Como disse, comecei no Vindos do Oriente mas, devido a divergências, deixei o grupo. Depois fui trabalhar no Maravilhas do Espaço. Estive neste grupo desta a sua criação, em 1990, até quando deixou de desfilar. Passei ainda pelo grupo Monte Sossego, Cruzeiros dos Nort

e e agora, em 2020, regressei ao Vindos do Oriente. Neste altura, trabalhávamos sem nenhuma compensação. Íamos para os estaleiros apoiar os grupos por amor ao Carnaval”, enumera Nóia, lembrando que só nos últimos anos é que começaram a pagar os artistas dos estaleiros. 

Carnavalesco desde sempre

Ao contrário de muitas pessoas que começaram como foliões nos grupos, Fernando Morais apaixonou por esta festa como carnavalesco, ainda que na altura se apresentava como desenhista. Este garante que, desde o primeiro minuto que pisou nos estaleiros, mergulhou de cabeça. E nunca mais parou. “Sempre fui um apaixonada pela artes. Então juntei o útil ao agradável. A minha vida profissional coincidia com o Carnaval. Estava a trabalhar e a divertir porque tinha liberdade ara criar coisas novas. Fazia as minhas pesquisas e estudava muito. Mais tarde, aproximei também do teatro, que é uma área que tem muito do Carnaval”, acrescenta.  

Estaleiro VO 2020

Nesta altura, de acordo com Nóia, permitia-se sonhar. Os enredos? Surgiam de rompante, diz. “Para se ter uma ideia de qual produtivo eu era, tenho neste momento pelo menos duas dezenas de enredo engavetados que, provavelmente, nunca serão conhecidos porque decidi aposentar definitivamente. Entendo que cada coisa tem a sua hora. E a minha para parar é agora. Estava a espera apenas de uma única gota para transbordar o copo”, diz sem especificar o que o levou ao limite, mas tudo indica que tenha a ver com as novas regras e a classificação do seu grupo.

Para este artista plástico, foi um acumular de ‘coisas estranhas’ com os quais não concorda que o obriga a afastar-se. “Cheguei a conclusão que não tenho mais nada para fazer no Carnaval de S. Vicente. Em outras ilhas, quem sabe…A minha mágoa em relação ao Carnaval de S. Vicente é muito grande, sobretudo devido a falta de reconhecimento. Sei que muitas pessoas gostam e elogiam o meu trabalho. Mas elogios não colocam a panela no lume. Para se ter uma ideia do tamanho da ingratidão, nos últimos dois anos tive de comprar bilhetes para poder assistir os desfiles. O mais caricato é que tive recorrer ao mercado negro”, desabafa. 

Prazer de desfilar

Este artista garante já não sente o prazer de antes em participar dos desfiles. Segundo conta, em outros tempos fazia questão de integrar o cortejo como figurante, em uma ala desenhada especificamente para o pessoal que trabalhava com ele nos estaleiros. “Criava uma roupa diferente para o meu grupo e sentia enorme prazer em brincar. Perdi o gosto. Como se diz, cada coisa tem o seu tempo e o meu de certeza que passou, talvez porque alguns colegas viajaram e acabei por ficar sem os meus companheiros. Das pessoas que começaram comigo restam poucos.” 

Questionado sobre o futuro agora que decidiu afastar-se em definitivo do Carnaval, Nóia admite que não tem um plano B. “Talvez eu me transforme apenas num assistente ou então decido fazer um retiro para fora da cidade. Perdi o feeling porque já não se respeita a arte e nem os artistas.  Lembro por exemplo do Djo Borja, um dos grandes nomes do carnaval mindelense, que hoje está doente e ninguém refere o seu nome, principalmente por esta altura. Ou ainda de Nhô Goy, que é de pequena estatura e que sequer consegue ver os desfiles do meio da multidão. Enquanto isso, vemos pessoas que vão Brasil buscar artistas para nos ensinar a fazer o nosso Carnaval, que já era excelente. É o cúmulo porque nós sempre fizemos o nosso Carnaval e era admirado. Estão a castrar a nossa ou melhor, a minha originalidade e a criatividade”, constata. 

Estaleiro VO 2020

Para não perder o que resta da sua alma, Fernando Morais revela que resolveu acatar os conselhos de amigos, que há muito o pedem para afastar. Este garante que já deu tudo de si para esta festa, sem receber nada em troca. Ao contrario, prejudicou a sua arte por priorizar o Carnaval. “As pessoas me perguntam se tenho peças para vender ou porque não expõe o meu trabalho. Digo que é por causa do Carnaval. Mas perdemos o espirito de brincar e de camaradagem que caracterizava esta festa. Hoje as pessoas estão mais preocupadas com regras importadas do Brasil que nada têm a ver com a nossa festa. Este já não é o meu Carnaval”, frisa. 

É com nostalgia que lembra do tempo em que se trabalhava apenas por amor à arte e ao Carnaval. Nesta altura, diz, quando terminavam os desfiles, os dirigentes visitavam as salas de convívio dos grupos para se confraternizarem. Todos eram amigos. Não havia raiva e nem ataques, como se vê agora, principalmente nas redes sociais. “Somos insultados apenas por pertencer ou trabalhar por um ou outro grupo. As pessoas nos maltratam sem qualquer respeito. Eu sou uma vitima mas, felizmente, tenho grande capacidade de encaixe. Na minha pagina no facebook sou apelidado do rato de esgoto por pessoas com responsabilidade com quem  já trabalhei. Veja o nível a que chegamos. É por isso que decidi afastar.”

A partir de agora, diz, vai vestir, novamente, a capa de artista plástico e trabalhar para ser reconhecido. Se não acontecer, será por culpa própria.

Constança de Pina

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