Sala cheia para ouvir e apoiar Amadeu Oliveira em S. Vicente: “Se for preso, vamos consigo”

Casa cheia em S. Vicente para ouvir a já badalada mensagem polémica de Amadeu Oliveira contra o sistema judicial. Ficou claro que a maioria das mais de uma centena de pessoas foi lá para manifestar o seu apoio incondicional ao jurista. “Se for preso, vamos consigo!”, disse um interveniente. E a sala aplaudiu.

O auditório da Universidade do Mindelo foi apertado para acolher as centenas de pessoas interessadas em participar num debate sobre os efeitos na sociedade da “não-justiça” e que teve como orador o jurista Amadeu Oliveira. O próprio palestrante ficou admirado com a resposta dos mindelenses a essa iniciativa do movimento Sokols, que, conforme Salvador Mascarenhas, faz parte de um leque de actividades agendadas para o mês de Maio.

“O primeiro aspecto a realçar é a minha satisfação por ver como a sala está cheia. E isso não é pelo mérito do palestrante. É uma prova que a não-justiça apoquenta quase todas as famílias cabo-verdianas. Se fosse um outro orador, certamente que seria a mesma coisa”, frisou Oliveira, antes de começar a sua conversa com uma plateia composta por gente de várias idades e formação profissional e académica.

Ao seu estilo, Amadeu Oliveira voltou a trazer à laia os entraves, “abusos”, “corporativismo” e “corrupção” no sector que tantas vezes já denunciou e que acabaram por valer-lhe um processo-crime, acusado de 14 delitos de honra contra um conjunto de juízes. No entanto, o seu primeiro alvo foram o PAICV e o MpD, os dois partidos do arco do poder que, na perspectiva do jurista, são as principais causas dos malefícios que enformam o sistema judicial.

“A primeira coisa a desmontar é a falsa questão da morosidade processual. Isto é uma mentira. O que existe é um sistema de selecção de processos dentro dos tribunais para alguns serem despachados rapidamente e outros ficarem a mofar nas secretarias por 20-30 anos. Os políticos dizem que combatem a morosidade para enganar o povo. Tenho exemplo de processos iguais, com a mesma natureza, que foram resolvidos em 15 dias e outros que demoraram mais de dez anos. Poderíamos aceitar o conceito de morosidade se esse problema afectasse todos os processos”, enfatizou Oliveira, deixando claro que o expediente nos tribunais depende tanto das pessoas envolvidas como do nome dos advogados.

Pelos dados que dispõe, há 102 mil processos-crimes nas Procuradorias do país, no entanto, diz Oliveira, o tratamento dos mesmos depende mais da vontade e interesse dos chefes das secretarias, dos juízes e procuradores do que com base em critérios lógicos de tramitação processual. Isto ocorre, segundo este jurista, porque há uma lei aprovada com a conivência do PAICV e MpD que, por ser omissa, dá campo de manobra aos magistrados fazerem aquilo que lhes der na gana, sem o devido controlo e responsabilização.

Para Oliveira, se o poder político quisesse realmente colocar ordem na casa, aceitaria uma proposta de lei por ele apresentada ao PAICV e MpD para que os processos passem a ser numerados e classificados por categoria, ao darem entrada nos tribunais. “Há prioridades, é claro, como nos crimes de sangue, habeas corpus, mas o princípio é que o processo que deu entrada em primeiro lugar seria tratado em primeiro lugar. Simples como isso”, revela Oliveira.

Apesar de os dois partidos concordarem com esse princípio, diz, a verdade é que nenhum deles tem mostrado interesse em levar essa lei ao Parlamento. Mais uma prova, para ele, de que as forças políticas têm acordos para não tocarem em certos assuntos. Um deles a Justiça porque, enfatiza, sabem que todos têm militantes com problemas pendentes e teriam também muita coisa a perder se o sistema funcionasse como deve ser. “Essa simples lei da tramitação processual iria diminuir o nível de corrupção e tráfico de influências no sistema”, frisou o orador, que advertiu a plateia para o facto de haver quem pague para um processo andar com passos largos e quem faça também o contrário: impedir o julgamento de casos incómodos até atingirem a prescrição.

“Apesar de criticarmos a classe política, a verdade é que os maiores abusos são feitos por magistrados neste país. Um político está sujeito a um escrutínio de 4 em 4 anos, mas já um juiz é inamovível, irresponsável, tem porte de arma e, pior, não tem ninguém para fiscalizar os seus actos”, compara Oliveira, que lembrou que a justiça é um bem exercido pelos magistrados e outros actores em representação do povo e para o povo. Logo, se desrespeitarem essa lógica, então o povo tem toda a legitimidade para agir. Uma forma simples, na sua opinião, seria cada um pressionar os políticos no sentido de obriga-los a aprovar, por exemplo, a tal lei de tramitação processual.

Ninguém a salvo

Para Amadeu Oliveira, a sociedade cabo-verdiana tem de estar ciente de que os vícios instalados no sector da justiça podem provocar vítimas em todo o lado. Ou seja, ninguém está a salvo de ser condenado injustamente, de ver a sua liberdade de viajar cerceada, as suas contas bancárias bloqueadas… E os exemplos, diz, são vários. Ele próprio, acrescenta, já foi alvo desse tipo de decisões.

A falta de recursos, segundo o palestrante, é outro falso argumento usado pelos tribunais para justificar a morosidade, “uma aldrabice para reclamar mais meios”. A seu ver, a questão de fundo é saber se, com os magistrados existentes e os palácios construídos, seria ou não possível resolver mais processos. Na sua perspectiva, por mais dinheiro que o Orçamento do Estado injectar no sector nada irá mudar porque o problema é mais profundo. Aliás, frisa que os montantes para a Justiça triplicaram nos últimos anos, mas nada mudou.

Apoio popular ao “maior criminoso” de C. Verde

Mais do que escutar Amadeu Oliveira, ficou claro no debate que a maioria dos presentes foi lá para manifestar o seu apoio incondicional ao jurista, pela “coragem” que tem demonstrado em enfrentar o sistema judicial. Aliás, de tanto atacar o Conselho da Magistratura Judicial, o Supremo Tribunal da Justiça e juízes de Comarca acabou por ser acusado de 14 crimes e levado a julgamento. “Passei a acusar os juízes e me transformaram no maior criminoso desta terra. Entretanto, assim que saiu a acusação fui logo levado a julgamento, num dos processos mais rápidos que conheço”, realçou Oliveira que, recorde-se, viu a audiência suspensa no Tribunal da Praia por causa da recusa do juiz. “Passaram quatro dias a perguntar-me sobre a minha vida. No quarto dia pedi para falarmos do crime organizado na justiça e o juiz pediu logo recusa.” “Agora tenho a vida suspensa porque estou tecnicamente no meio do processo, mas não há juiz para me julgar.”

Várias foram os intervenientes no espaço de debate, na sua maioria para manifestar o seu apoio moral e agradecer a “coragem” do jurista por dar o corpo à bala. Dois intervenientes chegaram mesmo a afirmar que, se Oliveira for preso, então muitas outras pessoas vão juntar-se a ele na sua cela. “Está a ser punido porque está a dizer a verdade. Ele não pode ir preso, se for vamos todos consigo”, afirmou José Heleno, que foi apoiado por uma forte salva de palmas.

No debate houve quem tenha perguntado ao orador o que podem fazer para obrigar o sistema a acabar com a morosidade processual, para pressionar o poder político a mudar o que está mal na Constituição, mas também para sugerir mais uma manifestação popular em prol da justiça. Já o jurista Armindo Gomes acabou por destoar-se um pouco das restantes intervenções ao dizer que não concorda com tudo aquilo que Amadeu Oliveira propala, apesar de ele mesmo defender a liberdade de expressão. E mais: esse jurista, que é professor universitário, deixou claro que o discurso de Amadeu Oliveira pode acabar por desanimar os alunos de Direito.

Na sua resposta, Oliveira disse lamentar que a sua acção seja entendida como um factor de desmotivação dos estudantes, quando devia ser vista como um exercício de tomada de consciência colectiva. “Até porque é preciso desmontar a ideia romântica do Direito e mostrar aos alunos que têm de contribuir para mudar o status ou vão também sofrer os mesmos males. Vamos torcer o pepino agora.”

Para o movimento Sokols, o debate alcançou o objectivo traçado, que era mobilizar uma boa parcela da sociedade e levar as pessoas a entender as causas do estado da justiça em Cabo Verde. Segundo Salvador Mascarenhas, a partir de agora os cidadãos ficam mais conscientes e podem aderir a um abaixo-assinado ou apelo à manifestação com mais propriedade.

Kim-Zé Brito

Sair da versão mobile