Os sãovicentinos mostraram esta manhã um cartão vermelho inequívoco ao Governo e à Camara Municipal na manifestação organizada pelo movimento cívico Sokols 2017 e que contou com uma adesão impressionante de pessoas de todas as idades. Munidos de apitos e trajados com camisolas brancas/pretas e cartazes a criticar o centralismo, o sufoco da ilha, o poder local e central, os manifestantes voltaram a pedir a autonomia para a ilha de S. Vicente, mas também um desenvolvimento harmonioso, equilibrado e justo do país. A marcha, que percorreu as principais artérias da cidade do Mindelo, foi pacífica, apesar do som ensurdecedor dos apitos, e deveria terminar na Praça Dom Luís. No entanto, um número significativo de pessoas resolveu deslocar-se para frente do edifício do Paços do Concelho a gritar em uníssono “no ka krê Gust”.
“Foi uma decisão expontânea que eu e um amigo tomamos quando chegamos na Praça Dom Luiz. Fomos porque a manifestação é contra o Governo e esta Câmara amorfa que nada faz para defender os interesses desta ilha, perante os abusos do poder central“, explica Maiuca, para quem a concentração foi um acto simbólico. Questionado se a presença de agentes de segurança da PN em frente à Câmara terá estimulado essa decisão, por pensarem que o presidente Augusto Neves estaria no edifício, esse jovem nega redondamente essa ideia. Para ele, tudo aconteceu de forma expontânea.
Como confirma Salvador Mascarenhas, responsável do Sokols, a concentração em frente ao Paços do Concelho não estava nos planos da organização. “Isto funcionou como uma mola apertada e que se desembaraçou da pressão. É um sinal do nível de intolerância que está a apoderar-se da população”, alerta Mascarenhas, que deu graças para tudo ter terminado na paz. É que, na verdade, o ambiente esteve um pouco aquecido em frente à CMSV, com os populares empunhando cartazes e disparando críticas sobre o desempenho e a postura da autarquia mindelense.
A organização perspetivava uma participação a volta de 10 mil pessoas, tal como em 2017, ano em que o Sokols promoveu a sua primeira grande manifestação, exactamente no dia 5 de Julho. Mas os mindelenses superaram de longe esta previsão.
A marcha arrancou da Praça Estrela às 11 horas, uma hora depois do previsto. Um compasso de espera que serviu para aquecer a máquina com mensagens fortes de três artistas do mundo do Rap e que deixaram as pessoas mais dispostas a mostrar o cartão vermelho aos políticos cabo-verdianos.
Dado o sinal de partida, o cortejo começou a serpentear-se e deixando revelar o tamanho da “serpente”. Aos poucos, as dúvidas foram-se dissipando sobre a quantidade de pessoas que deixaram os seus lares e enfrentaram o sol abrasador para lutar pela dignidade da ilha do Monce Cara. À medida que a marcha se aproximava da rua de Lisboa foi ganhando robustez e pujança dessa massa popular, cuja moldura ocupou a extensão da Avenida 5 de Julho. O movimento, refira-se, reuniu gente de todos os quadrantes e idades: crianças, jovens e adultos. Destaque para a participação de algumas caras conhecidas caso, por exemplo, do ex-presidente da CMSV Onésimo Silveira e do presidente da UCID, António Monteiro.
Em entrevista ao Mindelinsite, o deputado António Monteiro disse estar na manifestação enquanto cidadão saovicentino e cabo-verdiano, não na qualidade de líder partidário. “Vim para dar o meu apoio a este movimento. No Parlamento, enquanto deputado, temos feito muitas reivindicações para SV. Infelizmente, o governo, na maioria das vezes, tem feito orelhas moucas. A minha presença é mais um reforço para engrossar esta fileira. E esta é uma excelente manifestação, foi bem organizada”, afirmou Monteiro, mostrando-se expectante em relação ao posicionamento do Governo sobre mais essa prova de indignação daqueles que vivem em S. Vicente. Mesmo assim prefere acreditar no ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. “Qualquer Governo ou Câmara que se preze tem de levar esta manifestação em consideração porque o descontentamento é generalizado” acrescentou.
Já a professora-reformada Silvina Teixeira deixa claro que a sua decisão de participar na manifestação é porque quer ver São Vicente melhor. “Esta ilha está parada em termos de desenvolvimento. Se formos fazer uma comparação, há dez anos São Vicente estava num patamar elevado em relação as demais ilhas. Entendo que isto também não é salutar. Agora, não podem é parar o desenvolvimento desta ilha para as outras avançarem. É preciso que haja um desenvolvimento contínuo. O Governo tem de investir em todas as ilhas de forma igualitária. Mas, repito, neste momento estamos parados.”
Cepticismo sobre resultado da manifestação
Questionada se o Governo vai ouvir o clamor das ruas, esta mostra-se céptica. É que, segundo Silvina, neste momento existe muita prepotência. “Acho que estão a prejudicar esta ilha precisamente para contrariar os saovicentinos. Por isso, não acredito que se vá conseguir grandes coisas com este Governo. Há um discurso de arrogância, de desprezo, de não estou nem aí. É como se dissessem, podem berrar porque não estou a ouvir. E isso é muito grave “, desabafa.
Apesar desta situação, a nossa entrevistada não acredita em grandes mudanças porque, afirma, as pessoas deixam-se enganar com facilidade. “Muitos dos que estiveram na manifestação o seu nome é festa. Basta dar-lhes bem-estar por algumas horas ou um dia e pronto, cedem. Parecem a Dona Luísa Gusmão que disse: ‘mais vale ser rainha por uma hora do que duquesa por toda a vida.’ É por isso que há muitos festivais e carnavais. Se tirarmos os ´fest` e os ´carnes` ficamos com apenas os ais para todos os lados”, lamenta.
Igual entendimento tem o emigrante Vicente Graça, que depois de muitos anos a trabalhar no estrangeiro decidiu investir nesta ilha. Este justifica a sua presença com a necessidade de clamar por mais acesso a Cabo Verde, particularmente à ilha de São Vicente. “Sou um ex-emigrante que quer investir no sector do turismo. Neste momento, alugo apartamentos. Mas estamos a sofrer porque, quando as pessoas compram passagens aéreas internacionais e precisam pagar quase o mesmo valor para vir para S.Vicente, não é normal. Desanimam e desistem. Isto está a afectar esta ilha negativamente porque procuram outros destinos.”
E fala com conhecimento de causa. Diz, a título de exemplo, que, por causa dos conflitos no magreb africano, muitos turistas vieram para Cabo Verde, mas agora viajam para destinos mais baratos. Como resposta, este sugere a abertura do país para receber mais companhias aéreas. “Antes tínhamos a Transavia e o AICE recebia muitos voos charters. Hoje isso já não acontece. Simplesmente deixaram de voar para Cabo Verde. E o Governo nada faz neste sentido. Estamos estrangulados”.
Para este ex-emigrante, a sensação que se tem é que as coisas acontecem de forma propositada. É que, diz, em Cabo Verde governa-se para os partidos e não para o povo. Por isso, quando há alternância, a primeira preocupação é desfazer tudo, mesmo aquilo que é positivo e que está a dar resultado. Para ele, hoje Cabo Verde não tem líderes, mas sim chefes e dirigentes.
Constânça de Pina